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Vivemos numa época em cada qual fala para si mesmo na companhia de muitos outros"
José Cardoso Pires, Anjo Ancorado, Lisboa, Fevereiro de 1958.
No dia 26 passará mais um aniversário sobre o desaparecimento do José Cardoso Pires. Como não sei se nesse dia poderei escrever alguma coisa neste espaço, deixo hoje aqui a sua recordação. Para que conste. Sei que também hoje passará um documentário na RTP sobre a sua vida e obra - finalmente serviço público no canal público! - e que será alvo de uma homenagem póstuma no CCB, no domingo. Certamente com menos gente do que a Avenida da Liberdade terá nesse mesmo dia. Em todo o caso, entendi ser oportuno aqui deixar estas linhas. Porque dele não ficou apenas a obra e a memória que os seus livros representam, os quais, infelizmente, continuam tão desconhecidos da maior parte da nossa classe política e da maioria dos cidadãos deste país. Pergunto quantos deputados já leram - e compreenderam - "O Delfim", "O Anjo Ancorado", "A Cartilha do Marialva" ou "O Hóspede de Job"? Isto para já não falar de outros pequenos contos menos conhecidos, onde corvos e gatos, alguns travestidos de engenheiros, como poderiam ser economistas, se misturavam com a realidade. O José será sempre neste país uma das suas almas inquietas e um exemplo da clareza, da lucidez, da intervenção cívica oportuna e da elegante classe de um escritor, contista ou romancista, como ele próprio se gostava de classificar. E como as minhas palavras serão sempre menores e não passarão de um miar destinado a integrar os recônditos arquivos da voracidade dos dias das novas tecnologias, deixo-vos com as sempre certeiras, e por uma vez consensuais (coisa horrível, em regra) palavras do Mário Dionísio, a ver se alguém as lê, as dele e as do José:
"Como alguns mais, Cardoso Pires lutou, sobretudo escrevendo. Teve a virtude e a coragem de não descurar as longas horas, longos anos, de oficina, de ouvido atento à crítica mas só dela retendo o que pudesse interessar à expressão da sua personalidade, buscando, ousando, arriscando, melhorando sempre, até se tornar no grande escritor hoje admirado aquém e além-fronteiras. Com uma obra que, pela qualidade intrinsecamente literária e pela coerência ideológica, lhe dá a autoridade de afirmar, como 'Entre irmãos', um dia fez: "Não participar (...) do debate activo do seu país corresponde a uma alienação do exercício de escritor e a um empobrecimento desse mesmo país" - Mário Dionísio, 1980.