sábado, janeiro 29, 2011

AGORA RIEM-SE, AMANHÃ CHORAM

Pelo ar satisfeito dos senhores dir-se-ia que tudo lhes corre bem. A eles talvez, mas não ao futebol português, que a avaliar pela noticia de "A Bola" se prepara para ser chutado para a categoria das repúblicas das bananas.

sexta-feira, janeiro 21, 2011

VOTAR É TAMBÉM ARRISCAR


Estamos a menos de quarenta e oito horas da abertura das urnas onde serão depositados os votos que irão eleger o próximo Presidente da República.

Um dos grandes políticos da Antiguidade Clássica dizia que aquele que não participa na vida da república não é digno do seu estatuto de cidadania. Eu apenas acrescentaria que não é digno da sua liberdade.

Mais do que um direito regularmente exercido de tempos a tempos, votar é uma obrigação, um apelo à nossa consciência, à dimensão ética, social e cultural das nossas escolhas. Uma prova de vida, de humanidade e de altruísmo. A concretização da responsabilidade individual na dimensão política da Nação. Um acto de solidariedade e uma garantia de perenidade individual e colectiva.

Pelo menos é assim que eu encaro, em toda a sua transcendência, o exercício do direito de voto numa sociedade democrática. Nesta medida também sou um incorrigível.

Mas, perguntam-me, em quem votar?

Não serei a pessoa indicada para orientar o voto de ninguém. Não me reconheço o talento, menos ainda a habilidade, para orientar consciências, promover escolhas ou zelar pela liberdade dos meus semelhantes. Zelando pela minha não posso deixar de pensar na dos que me rodeiam. E é tudo.

Todos os que de há muito acompanham o que escrevo sabem o que penso sobre quase tudo, embora haja sempre algo que tenha ficado por dizer e que eu tente transmitir no rabisco subsequente.

Por isso dir-vos-ei que escolher é ponderar. Escolher é reflectir. É ser capaz de se projectar no futuro e avaliar as consequências das suas escolhas. Escolher é assumir a liberdade em toda a sua plenitude. Sou um homem livre. Um homem de escolhas.

O problema é que não há candidatos perfeitos.

O homem é feito de muitas subtilezas, um mundo de átomos que permanentemente se distinguem e multiplicam sem jamais se confundirem.

Escolher um Presidente da República consiste, pois, por vezes, em escolher aquele que aos nossos olhos é menos imperfeito, aquele que mais corresponde aos nossos afectos e às nossas preocupações. Aquele que poderá dar mais garantias de futuro. Não a ele próprio ou ao seu clã. À comunidade. À minha liberdade.

Quando no próximo domingo, 23 de Janeiro, chegar a hora de exercermos o nosso direito e cumprirmos a nossa obrigação para com as gerações futuras, importa que sejamos capazes de pensar se é melhor um presidente responsável e consciente das suas limitações ou um tipo que sob o manto diáfano da responsabilidade se convenceu de que sabe tudo, de que pode escolher por mim em toda e qualquer circunstância para eu poupar nas portagens e que se crê sem limitações.

E também importa que tenhamos consciência de que não é a mesma coisa escolher uma pessoa que protegida pela imagem de um aparente rigor e respeito pela legalidade democrática e administrativa se entretém nos intervalos desse rigor a tratar da sua vidinha e da dos seus, escusando-se a esclarecer o como, o quando e o porquê das obscuridades e pantominices da sua vida de cidadão, ou escolher um outro que sem se esconder na sombra ou nos subterfúgios das instituições se predispõe a abrir a porta do seu passado, da sua vida pública e privada, com a hombridade de quem é capaz de reconhecer que não há homens infalíveis e que o super-homem não passou de uma criação de Nietzsche e da banda desenhada.

Como não será indiferente optar por um homem de coragem, por alguém disposto a enfrentar o Adamastor sozinho se necessário for, quando ao seu lado medra o compadrio, o nepotismo, a obscuridade e a falta de verticalidade, pagando o preço da diferença, pagando o preço da honra em defesa de um destino colectivo. Não é a mesma coisa optar por um tipo cinzento, disposto a esconder-se e a proteger os seus pensamentos e frases do escrutínio dos seus semelhantes, alguém que evita comprometer-se com o passado, com o presente ou com o futuro para ir fazendo o seu caminho sem grandes ondas, rasgos ou responsabilidades, garantindo uma confortável reforma ao lado da miséria que grassa.

Na hora de escolher não será preciso levar qualquer cartilha. Bastará olhar para trás, fechar os olhos e pensar no dia de amanhã.

E aos que não forem capazes de fazer isto, então que sejam o mais terra a terra possível. Bastará pensar se é preferível um presidente que desvia o olhar quando confrontado com a vergonha da falta do rigor privada que apregoou em público, que evita ver o que faz a sua mão esquerda quando se benze com a direita, que ignora os bandos de pilantras que se acolhem à sua sombra, dispostos a atentarem seja por que meios for contra o Estado de Direito democrático, enquanto ele próprio vai enriquecendo discretamente, cumprindo as tarefas rotineiras que qualquer robot devidamente programado faria e ao mesmo tempo vai fazendo obras em casa sem licença camarária, nada fazendo para evitar que o protagonismo do seu nome se misture nas andanças camarárias, convivendo com a fantasia dos piruças que o rodeiam e o amiguismo que evita fiscais aborrecidos.

Ou, se ao invés, é preferível alguém capaz de confessar as suas fraquezas, de fazer um esforço permanente para se melhorar e elevar, alguém ciente da sua condição, que é capaz de dizer não a um amigo, de chamá-lo à razão e responsabilizá-lo pelas suas acções sem ter de ostracizá-lo ou renegá-lo. Alguém que sabe é que preciso distinguir a cidadania, combater a corrupção de forma transparente, começando na sua própria casa, e, também, capaz de ultrapassar as suas limitações, de exceder-se e de responder aos apelos da sua consciência em prol da Nação.

Votar é também arriscar. A vida é um risco.

Eu prefiro um homem de coragem que chora a um cara-de-pau medroso. Eu prefiro um homem que se assume, que se revolta, um homem curtido pela fealdade física da vida, um homem que marcou o seu destino a um tipo marcado pelo destino.

Eu quero na Presidência da República um homem capaz de reconhecer a dimensão ética da liberdade. Não quero um banana sem chama ou um tipo desfasado do seu tempo, culturalmente senil e subserviente das maiorias corporativas.

Eu prefiro um homem como eu. Um homem capaz de se reconhecer na adversidade. Capaz de resistir. Um homem à dimensão de Portugal. Um homem como nós.

domingo, janeiro 09, 2011

TARDOU

Finalmente, parece que um deputado tomou consciência da má prestação de serviço da EDP e se interessou pelos "acidentes" que diariamente acontecem. Infelizmente não é só no Algarve. O que se passa a Sul tem continuação na região de Lisboa, no Oeste, no Norte, enfim, por todo o lado. Já não era sem tempo que alguém acordava.

sábado, janeiro 08, 2011

DIÁRIO IRREGULAR

4 de Janeiro de 2011

Tal como eu já aqui escrevi, e hoje foi sufragado por gente tão diferente como Miguel Sousa Tavares, Camilo Lourenço, Helena Matos ou Manuel Villaverde Cabral, não é pelo facto do candidato Cavaco Silva dizer qualquer coisa do género “hão-de nascer os homens que sejam mais honestos do que eu”, que ele se torna mais sério, mais honesto do que os outros que nasceram depois dele ou que escapa a que lhe sejam feitas perguntas incómodas.

Se o candidato Cavaco Silva não quiser responder às perguntas é lá com ele. Alberto João Jardim ou Pinto da Costa também só respondem ao que lhes convém. E não ao que a seriedade, a transparência da vida pública ou o respeito pelas instituições obriga. Nisso, Cavaco Silva não se distingue de nenhum desses dois. Desconversa.

Escrevi, por diversas vezes, o que pensava sobre Cavaco Silva. Quem leu dever-se-á ter apercebido de que a partir do caso das escutas e da óbvia protecção dada a Fernando Lima passei a colocá-lo ao nível de um Rocha Vieira (mais um da Comissão de Honra). Por alguma razão Fernando Lima era também visita assídua em Macau – cruzei-me várias vezes com ele no Mandarim Oriental – e beneficiou do seu apoio e do de Jorge Rangel para publicar o que dificilmente publicaria noutro lado. Um promoveu em Macau os negócios dos "protegidos" – houve quem sendo director de um serviço público fosse nomeado por urgente conveniência de serviço para assinar um contrato, em representação do Governo de Macau, com uma sociedade anónima por acções, da qual também era accionista e administrador, enquanto funcionário público, e acabasse condecorado, logo a seguir, no 10 de Junho pelos bons serviços prestdos (o general Eanes não devia saber disto quando escreveu o prefácio do livro da Gradiva) –, o outro, sendo professor de Economia e ex-primeiro-ministro, acha normal gastar € 100.000,00 (cem mil euros) – uma bagatela que qualquer reformado tem debaixo do colchão para ir ao pão – a comprar acções não cotadas em bolsa de um banco onde pontificavam correligionários do partido, acções que vendeu com um lucro substancial sem que agora considere sequer admissível que se lhe pergunte como as comprou (por sugestão de quem, por intermédio de quem?) e a quem vendeu (pôs anúncio no jornal ou tratou de falar com um gestor de conta "amigo" para lhe arranjar comprador?), embora seja candidato presidencial e Presidente da República, e em que condições (cheque, dinheiro vivo, transferência bancária, e de quem?), remetendo as respostas às explicações que deve dar, a bem da transparência e da seriedade do regime, para textos esotéricos cozinhados no recato do seu gabinete, que religiosamente publica na Internet e que nada esclarecem sobre aquilo que importa, fazendo de conta que os outros, além de cegos, mudos e surdos, são parvos.

Um homem sério não remete para os textos que publicou in illo tempore num qualquer local da Internet a defesa da sua honra, dos seus pontos de vista e das suas convicções. Ou, pior um pouco, para as declarações que depositou no Tribunal Constitucional e que nada esclarecem sobre os negócios que andou a fazer antes de depositá-las, princípio que também aplico a qualquer outro político, chame-se Valentim Loureiro ou Jerónimo de Sousa.

Os desempregados, os pobres e os reformados, cuja defesa o candidato Cavaco Silva reclama em exclusivo, não têm banda larga no Sapo e dificilmente terão acesso a um computador para ler as declarações publicadas no site da Presidência da República. Quando muito irão à Internet para procurar trabalho, saber da melhor forma como recorrer a um subsídio da Segurança Social ou imprimir um formulário para esse efeito.

Admito que aquilo que o candidato Cavaco Silva disse sobre a gestão do BPN pós-nacionalização, conduzida por alguns dos senhores da sua comissão de honra (eu bem dizia que estavam lá todos), e seguramente que já motivado pela antevisão dos “orgasmos” que os banhos de multidão do companheiro Jardim sempre lhe proporcionam numa deslocação à Madeira, digeridas que estavam as antigas críticas do anfitrião ao “Sr. Silva” (é preciso estômago!), retive as palavras desta noite de Fernando Ulrich sobre as críticas do candidato à acção do Governo no caso BPN: “Eu não sou um apoiante deste primeiro-ministro, mas penso que eles não cometeram tantos erros como os que estão implícitos na sua pergunta” (de Ana Lourenço, na SIC).

Eu também não sou (apoiante do primeiro-ministro, entenda-se, e não sou do Bloco de Esquerda). Nem nunca fui. Apesar de em tempos lhe ter dado o benefício da dúvida e até a minha confiança. Como dou a qualquer homem de bem antes de ver desmentidas as suas palavras pelas "alhadas" em que se mete.

Porém, como entretanto também não andei a comprar nem a vender acções, fosse do BPN, do BCP ou da Mota-Engil, continuo a pensar que tenho direito, como qualquer cidadão, a saber se as acções que Cavaco Silva tinha na SLN/BPN foram vendidas a um “veículo”, a uma offshore de um dos seus “compagnons de route” do cavaquismo, ou se o foram ao Manuel dos Anzóis, reformado, residente na Musgueira, que viu o anúncio da “venda de acções da família C. Silva”, por “motivo à vista”, num painel do Pingo Doce quando buscava “uma companheira para amizade sincera”.

É que a diferença entre mim, contribuinte, que vou pagar com os meus impostos os milhares de milhões do buraco do BPN, e o candidato Cavaco Silva, que como eu vai pagar com os seus impostos os milhares de milhões do buraco do BPN, é que ele ganhou umas dezenas de milhares de euros a comprar e vender acções da SLN/BPN e a seguir nomeou Dias Loureiro para o Conselho de Estado, e a mim ninguém me perguntou se as queria comprar e vender um ano depois com os proventos, que para lhe serem pagos, a ele e a outros como ele – fora da bolsa e pelos valores que foram – nos deixaram agora, a todos, de calças na mão. Ou se achava bem a nomeação de Dias Loureiro para o Conselho de Estado.

Não é por se ter libertado do escândalo antes do escândalo se tornar num caso de polícia que as coisas fazem diferença. Fá-lo-iam se Cavaco Silva falasse verdade aos portugueses em vez de se refugiar nas meias-palavras.

Isto não tem nada a ver com o que se passou em Inglaterra, na Irlanda, com as escutas, com o Freeport, com a licenciatura de José Sócrates ou com os robalos de um sucateiro.

Em causa estão apenas os "activos" de uma candidatura presidencial que em vez de motivarem verdade, transparência e respeito pelos eleitores, geram pesporrência paternalista e dúvidas sobre a capacidade do candidato em distanciar-se dos "veículos" que o trouxeram até aqui.

DIÁRIO IRREGULAR

2 de Janeiro de 2011

Uma das coisas em que este país melhorou a olhos vistos foi na qualidade do seu design. Falo de objectos de decoração, de utensílios e de mobiliário. A qualidade do design é boa. O gosto e a funcionalidade continuam, todavia, muito discutíveis. Há muita coisa feita em Portugal, mas as melhores continuam a vir de fora. O design pode ser nacional, os materiais parecem-me aceitáveis para a função a que se destinam, só que a qualidade do acabamento é seguramente chinesa. E se depois a limpeza for assegurada por uma dessas espaventosas que deixam tudo lascado e riscado, o melhor é desistir da compra. A forma como hoje em dia se fazem as coisas aflige-me. Não é só nas tarefas domésticas ou nos escritórios. Acontece o mesmo nas lojas, na oficina do carro ou na lavandaria. O problema é cultural. Esta gente não tem formação e a culpa não é das insuficiências da escola pública porque os das privadas são iguais. Não lhes ensinam, não aprendem e muitos também não querem saber. Se não for o esforço individual a fazer a selecção torna-se impossível distingui-los entre si pela maneira como usam o brinco, põem o chapéu ou mostram o pneu a sair das calças.

A entrada na corrida presidencial do madeirense José Manuel Coelho pode vir a fazer a diferença. O homem não quer apenas chocar. E parecendo-me um tipo minimamente inteligente e com sentido de humor – só num registo humorístico se pode interpretar aquela cena da bandeira nazi no parlamento regional da Madeira – não me admiraria se houvesse gente abstencionista a ir às urnas por sua causa. Uma coisa é certa: o cinzentismo macambúzio que ficou dos monólogos a dois do mês de Dezembro vai ser substituído pela irritação de alguns dos protagonistas. O facto dele não se levar muito a sério só abona a seu favor e permite-lhe dizer coisas sérias a brincar e sem esforço. Ao Alegre não causará grade mossa, mas não estou tão certo que Cavaco Silva não venha a ser penalizado com uma tão súbita quanto inesperada entrada em cena. A comparação que fez entre a mensagem de Ano Novo do Presidente da República e as declarações de circunstância das meninas nos concursos de beleza foi um mimo a prometer mais.

O empregado que hoje nos atendeu ao almoço era nepalês. De Pokhara. Ficou admirado por saber que eu conhecia o belíssimo lago da terra dele onde vi o pico do Annapurna reflectido na superfície das águas espelhadas. Veio direitinho para o Happy Family. Fiquei elucidado sobre quão miserável devia ser a sua existência quando com uma desarmante simpatia e simplicidade me disse não conhecer Katmandu nem os arredores. Só conhecia Pokhara. Não sei como veio cá parar, nem o que terá passado até aqui. O facto de ele estar entre nós devia ser motivo de satisfação e não nos pode deixar indiferentes ao fenómeno da emigração. Oxalá que seja feliz por cá.

O ruivinho perdeu em casa. Pinto da Costa começa o ano engasgado. Amanhã deverá vir dizer que a taça da liga é uma competição menor. Em parte é verdade. Só em parte, porque também lá estão. Assim, só posso pensar que 2011 entrou bem.

domingo, janeiro 02, 2011

DIÁRIO IRREGULAR

1 de Janeiro de 2011

Com excepção do dia em que jurei a mim mesmo deixar de fumar (cigarros, regularmente, em 1 de Janeiro de 1993), coisa que pegou no dia em o Miguel V. me xingou a viagem toda de Casal Velho para Lisboa por causa do fumo dentro do carro e do frio que entrava pela janela, não sou de fazer juras em cada dia primeiro de Janeiro. Só tenho força de vontade para aquilo que considero verdadeiramente importante. Deixar de fumar foi uma delas. Começar a escrever estas linhas foi outra.

Antes de prosseguir quero avisar a quem vier a ler estas linhas de que nesta coisa dos diários sou um neófito, com todos os prejuízos e danos para a minha imagem que daí podem advir. Como escreveu Marcello Duarte Mathias (cada vez gosto de mais de relê-lo porque há poucos, muito poucos, como ele, na elegância, no estilo e na simplicidade com que trata a língua), “não há coisa pior do que os neófitos: seja de Deus, do sexo ou da política”, mas de uma coisa tenho a certeza, é que amanhã já não serei neófito. E depois, à medida que este diário público e em letra de forma for surgindo, as pessoas ir-se-ão habituando. Esquecendo.

Um diário é datado e a datação limita-o. É a sua marca genética. Mesmo quando alguns anos depois o relemos, sem prejuízo de podermos transportá-lo para o presente, ele permanece encaixado num ponto que foi. Em todo o caso, quando a memória começa a falhar, e ela amiúde já falha, permite-nos manter um referencial em relação a nós mesmos.

Registar factos é próprio de outro tipo de homens, é coisa de especialistas. Eu prefiro ir registando as minhas dúvidas, as minhas perplexidades, as minhas convicções. Para que não me esqueça delas. Não me perdoaria esquecer aquilo que para mim foi importante. Pequenas rotinas, lampejos de um momento, a memória. A memória é uma espécie de beijo. E numa terra de beijoqueiros há que ser selectivo. Na memória só podem ficar registados os bons. Ou os que marcam por uma razão ou por outra.

Não penso que esta quadra, ano após ano repetida de acordo com o calendário judicial, que aos poucos foi substituindo o religioso, suspendendo prazos e trocando-os por cartões de Boas Festas, sms cheios de “k” e notificações do Fisco, faça esquecer o verdadeiro sentido do Natal, a anteceder a entrada de um Novo Ano e a caminhada dos Reis Magos. A comunhão que a quadra envolve, o sentido de recolhimento e partilha que vejo nela (muito mais do que os embrulhos de circunstância e o final de concursos televisivos medíocres) faz-me repetir, apesar de tudo, alguns momentos que reservo para mim depois dos outros se recolherem. Há o disco que se repete (sublimes os duetos de Aznavour com Sting e com Nana Mouskouri), o livro que se relê, o charuto que em cada ano regressa enquanto o seu fumo persegue a vela que teima em arder aromatizada pelas fragrâncias da moda.

Ouvi de relance a Clara Ferreira Alves (há mulheres que nos fazem gostar mais das mulheres) referir esta noite qualquer coisa como “a carteira de cumplicidades do BPN”. Parece que ela gostava de vê-la esclarecida. Eu também. Mas da maneira que este país está, perguntar a Cavaco Silva (ele que até já fala na "ética republicana") o que o levou (e já agora à sua filha) a comprar acções do BPN/SLN não cotadas em bolsa, tentar esclarecer quem as recomendou (e quem foi o figurão que tratou da burocracia) e como as coisas se processaram entre o momento da aquisição e a decisão de venda, incluindo as verdadeiras razões da respectiva valorização, é mais ou menos o mesmo que acontecia há uns meses quando se perguntava por uns desenhos da Cova da Beira, umas licenciaturas “esquisitas” ou umas offshore impertinentes. Qualquer que seja a cor, o fundamentalismo é sempre o mesmo quando por detrás dele está a subserviência enfatuada ou a crença na infalibilidade do testemunho.

Pedro Marques Lopes, participante no mesmo fórum da Clara, dizia que o caso BPN vai ser uma espécie de “Vale e Azevedo 2”; para logo a seguir acrescentar que “foram feitas vigarices absolutamente gigantescas” (sic na SIC-N), recusando-se a acreditar que “aquilo” fosse obra de um homem só.

Eu também não acredito. Penso que ambos têm a razão. A Clara mais do que o Pedro.

Por vezes gostaria de ter mais distância. A distância dá-nos outra liberdade, mesmo quando teimamos em querer manter a lucidez. E se eu prezo a lucidez. Dá-me outra liberdade. Não é fácil. Em especial quando, como também escreveu “o” Marcello – os autores que apreciamos tornam-se íntimos ao fim de algumas obras: eles partilham a escrita; nós, leitores, vamos sublinhando-lhes as frases, as metáforas, as hipérboles, e, no caso dele, a serena e elevada lucidez que há tantos anos o acompanha –, se vive num país que é “uma coutada de compinchas”, de “valores entendidos que se ajudam e promovem mutuamente”, que não admite “que alguém que não lhes preste vassalagem nem navegue nas mesmas águas, possa ter mais talento do que eles sem deles depender”. O general Rocha Vieira também era assim em Macau, coisa que o general Eanes não sabe, não percebe nem conhece, quando lhe prefacia os livros de tom laudatório e adolescente que a Gradiva edita (o Guilherme é um homem bom e inteligente mas livros daqueles dão a ideia de que está a agradecer os serviços que prestou ao tipo).

Abomino tanto a presunção quanto a avareza e a pelintrice.

Enfim, há alturas em que tudo se torna mais verdade. Também mais doloroso. E desta vez, raio de lembrança, a Lusa e o Afonso Camões não têm culpa do estado a que tudo isto chegou. Seria injusto negá-lo. Já não é Natal. Mas quem diria que foi 1 de Janeiro?