Li, com a atenção que merecia, o acórdão de 16 de Janeiro de 2007, proferido no processo de “sequestro de menor”, que correu termos no Tribunal Judicial de Torres Vedras, no qual foi condenado o cidadão Luís Gomes, 1º sargento do Exército.
O acórdão está devidamente fundamentado e sob esse aspecto pouco haverá a dizer. Os formalismos são para cumprir e nisso os nossos tribunais costumam ser “mais papistas que o Papa”, sendo múltiplas as vezes em que o formalismos processual serve apenas para se arquivar mais depressa um processo ou para se evitar um julgamento mais incómodo. Todavia, não me parece ter sido esse o caso do acórdão referido.
Há, no entanto, um conjunto de questões que não podem deixar de ser colocadas, para além da óbvia qualificação do crime como de sequestro, sendo questionável que um ser humano seja, como se irá ver adiante, pelo tribunal referido como se fosse uma coisa, na esteira da tradição latina, admitindo-se, ainda que uma criança com dois ou três anos tivesse discernimento e liberdade para escolher e se deslocar do convívio do arguido para o pai biológico, para ssim ver preenchido o tipo criminal.
Assim, de importante para o que pretendo aqui deixar, e sem esquecer que foi manifesta a desobediência do arguido a várias ordens judiciais e múltiplas as vezes em que, tendo sido regularmente notificado, nem sequer compareceu em juízo, temos que:
1. A decisão de entrega da menor ao pai biológico só foi proferida em 13 de Julho de 2004, mais de dois anos após a entrega da menor ao arguido e sua mulher;
2.A sentença é omissa quanto à data em que o arguido e a mulher foram notificados da sentença que regulou o poder paternal e este era um dado relevante que deveria constar do acórdão;
3.O acórdão esclarece que foi proferido despacho que não admitiu o recurso interposto pelo arguido e a sua mulher, por falta de legitimidade destes, mas uma vez mais omite a data em que isso aconteceu, remetendo para um documento ao qual o leitor não tem acesso;
4.No ponto 8 dos factos provados, o tribunal refere que o arguido conhece o local onde a menor se encontra, remetendo para uma informação da Polícia Judiciária;
5.Logo a seguir, no ponto 9. o tribunal assinala que se desconhece se o arguido e a mulher continuam a viver juntos com carácter de habitualidade, bem como, “se o arguido Luís vive diariamente com a menor”;
6. Logo que tomaram conta da criança, o arguido e a sua mulher alteraram o nome da menina para Ana Filipa;
7. Houve denegação expressa da “tradição da menor”;
8.Que a menor nasceu de um relacionamento “ocasional e esporádico” havido entre o pai e a mãe da menor;
9.Em 11 de Julho de 2002 o pai biológico declarou que assumiria a paternidade se fossem efectuados testes hematológicos que indicassem ser ele o pai da criança;
10. Em 27 de Fevereiro de 2003, o pai biológico manifestou vontade de regular o exercício do poder paternal e ficar com a menor á sua guarda;
11. Desde que soube ser pai da menor, o assistente anseia ter a filha consigo;
12. A actuação do arguido e da mulher, privam a menor de frequentar um infantário, impedem-lhe o convívio com outras crianças, impedem-lhe a apreensão de regras de convivência social e a aquisição de conhecimentos, necessário ao seu “são, harmonioso e sereno desenvolvimento e uma boa formação e educação” – ponto 65 do acórdão;
13. Em 20 de Janeiro de 2003 foi requerida a adopção;
14. Em 3 de Dezembro de 2004, o Tribunal do Entroncamento rejeitou um requerimento para entrega da menor, por erro na forma de processo.
Posto isto, impõe-se dizer o seguinte:
a) Quando o arguido e a mulher requereram a adopção da criança (20/1/2003) ainda o assistente não tinha manifestado ao magistrado do MP a sua intenção de regular o exercício do poder paternal, o que só aconteceu em 27 de Fevereiro de 2003;
b) A decisão de regulação do poder paternal foi proferida em 13 de Julho de 2004;
c) Em qualquer país normal e civilizado, um processo de regulação de poder paternal não pode demorar um ano e meio só na primeira instância;
d) De igual modo, num país desses, um processo de adopção estaria concluído no máximo em seis meses;
e) O Tribunal sublinha que o arguido conhece o paradeiro da menor de acordo com uma informação da Polícia Judiciária, desconhecendo eu qual a razão de ciência que permite extrair tal conclusão;
f) Mas logo a seguir é o próprio Tribunal que, contraditoriamente com tudo o que apurou, vem dizer que desconhece se o arguido Luís vive diariamente com a menor;
g) A criança nunca foi tratada por Esmeralda, mas sim por Ana Filipa;
h) Fala-se da “tradição da menor” como se fala da “tradição de uma coisa”, como se a criança fosse uma coisa, móvel ou imóvel, um objecto inanimado, um imóvel, como se não estivesse fora do “comércio” ou como se a pessoa pudesse ser objecto de relações jurídicas (vd. Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, 2º, pág.ª 105);
i) Foram os depoimentos das testemunhas que levaram o tribunal a concluir que a menor nasceu de uma relação ocasional, o que, na perspectiva do Tribunal, certamente desculpará o facto do pai só ter aceitado assumir a paternidade da criança depois da realização dos testes hematológicos, o que não deixa de ser altamente discutível;
j) A conclusão do ponto 65 do Acórdão é, no mínimo, despropositada e caricata, esquecendo o Tribunal que o que ali está entra pelos olhos de qualquer observador não ser verdade: desde quando é que o convívio da menor com o arguido e a mulher impede a menor de apreender regras de convivência social, o convívio com outras crianças e a aquisição de conhecimentos que permita o seu são, harmonioso e equilibrado envolvimento?
l) Finalmente, o Tribunal considera que a menor devia ser entregue ao assistente, sem mais, uma vez que mesmo que o eventual recurso da regulação do poder paternal viesse a ser admitido, este teria efeito devolutivo. Ou seja: de acordo com o entendimento do acórdão, a menor devia ser imediatamente entregue ao pai biológico, correndo-se o risco do recurso ser admitido e, se julgado favoravelmente, um, dois ou três anos depois a menor seria, então, de novo, entregue ao arguido e à sua mulher. Uma vez mais a criança é tratada como uma coisa que pode andar em bolandas, aos trambolhões do pai biológico para o arguido e sua mulher.
m) Pergunto ainda se o pai biológico iria tratá-la por Esmeralda ou por Ana Filipa, nome pelo qual a criança sempre foi chamada a partir do momento em se apercebeu do mundo que a rodeava a passou a ter um entendimento mínimo da vida e dos afectos de quem a rodeava, e se depois, sendo o recurso julgado favorável a criança voltaria para o arguido, retomando o nome de Ana Filipa. Será que ela alguma vez iria compreender estes minudências da justiça.
n) Que numa situação destas os tribunais continuam a rejeitar requerimentos para entrega do menor por … erro na forma do processo.
o) O arguido e a menor colocaram em causa o interesse da menor, como conclui o tribunal? A menor estaria mais protegida com o pai biológico? Tenho sérias dúvidas e mais ainda quanto á forma como o tribunal retira as suas conclusões para justificar a pesadíssima pena que aplicou.
Ontem ouvi na televisão que um polícia que ultrapassou um carro pela esquerda numa auto-estrada, para os lados do Montijo, utilizando para tal a berma, que dessa forma atingiu gravemente as pessoas que ali estavam a proceder à reparação de um veículo ou aguardando a assistência, que veículo estava devidamente sinalizado, que os ocupantes do veículo parado envergavam coletes reflectores, mandando para o leito de um hospital os atingidos, um dos quais de forma muito grave, apresentando-se às autoridades uma semana depois de denunciado, foi presente a um juiz e mandado em paz, ficando a aguardar o desenrolar do processo em liberdade.
Nada mais tenho a acrescentar. Limito-me apenas a recordar que tribunais que proferem sentenças que ofendem o sentimento de justiça dominante na comunidade a que se destinam, perdem a sua base de legitimação, constituem um atentado à própria comunidade e não contribuem para a paz social. As consequências dessa atitude só começam a ser perceptíveis ao fim de alguns anos. Depois não se queixem.