Com a devida vénia, transcreve-se aqui o artigo do juiz-desembargador Rui Rangel, publicado no Correio da Manhã de 28/01/07 e para o qual foi chamada a minha atenção pela Câmara Corporativa.
O maior desafio contemporâneo é a construção de uma ordem social justa, verdadeira e humanizada. É neste desafio que a Justiça deve procurar afirmar-se, ajudando a fortalecer os seus valores. Ser juiz nesta ordem social é servir a Justiça e o Direito, com vista à satisfação do bem humano. Estes mandamentos só serão alcançados se o juiz, ao aplicar a lei de acordo com as melhores regras interpretativas, não esquecer os outros valores essenciais da vida, como a sensatez, o bom senso, os afectos e os sentimentos. O juiz, sendo um técnico de Direito com específica formação, não pode ser um autómato da lei. Hoje em dia é também um criador de direito e um ‘fiscal’ da constitucionalidade das normas jurídicas. É por isso que as chamadas motivações não jurídicas, aquelas que se prendem com a experiência de vida, são decisivas na actividade do julgador.
Ser juiz não é só conhecer a lei e os códigos de cor, se não mais valia o Estado contratar máquinas para debitarem justiça pronta e desumana. O rigor técnico-formal das decisões judiciais não pode esquecer a componente humana que está presente no acto de fazer justiça.
Dito isto, reconheço que esta crónica não me é fácil, na medida em que me obriga a criticar colegas meus, companheiros de jornada, que não estiveram bem.
No caso do sargento Luís Gomes, não me resta outra saída. Reconheço que os juízes têm dificuldades em lidar com a crítica. Reina, no meio judiciário, uma mentalidade de protecção excessivamente corporativa que sempre combati, por ser negativa e nos isolar do mundo moderno.
Daí não poder ficar indiferente à polémica gerada em torno da decisão do Tribunal de Torres Vedras.
Ao acórdão deste tribunal, que condenou Luís Gomes numa pena de seis anos de prisão, por prática do crime de sequestro, escapou, lamentavelmente, tudo isto. É uma decisão cega, brutalmente injusta e desproporcional. Aqui só a norma jurídica violada, que, ainda por cima, se afigura de aplicação errada, quanto ao crime de sequestro, foi acolhida. Nesta casa da justiça, alguém esqueceu ou deixou fugir pela porta pequena as outras vertentes da vida.
Venceu a ditadura do Direito, perderam os valores humanos da Justiça, que também fazem parte da norma jurídica e que, neste caso, até eram facilmente conciliáveis. A saber, os superiores interesses da criança e o amor que lhe é devido. É preciso banir da cultura judiciária uns certos tiques de autoritarismo, que por falta de formação ou por juventude a mais a transformam numa presa fácil.
'HABEAS CORPUS'
A providência de ‘habeas corpus’ prevista na lei criminal visa atacar uma situação de prisão ilegal. Ocorre quando alguém é preso por entidade incompetente; quando os factos imputados não justificam a prisão; ou quando se encontra excedido o prazo de prisão preventiva. No caso do sargento Luís Gomes não se verifica nenhuma destas situações. O pedido é errado e injustificado e pretende criar ilusões e falsas expectativas nas pessoas, o que não é aceitável por ter sido subscrito por figuras ilustres do nosso burgo que deviam conhecer a lei.
Saber se a decisão está errada e se estamos na presença de um crime de sequestro só é possível por via de recurso ordinário para o Tribunal da Relação. As dez mil assinaturas só servem para tentar deslegitimar o poder judicial e nunca para resolver a prisão ordenada. Como afirma Tom Wolfe, “o que nesta fogueira se consome em lume de uma profunda e ácida ironia é a ignorância e a arrogância..."
Rui Rangel, Juiz
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