Não foi o primeiro a sugeri-lo. Mas talvez tenha sido o primeiro a colocá-lo sob letra de forma em termos tão inequívocos.
Vital Moreira avançou ontem no Público com a ideia do primeiro-ministro efectuar uma remodelação. Vindo de quem vem não se pode dizer que a proposta seja inocente. Confesso que não poderia estar mais de acordo.
Como ainda ontem Helena Matos referia, o Governo é hoje e cada vez mais um órgão unipessoal. O que não será certamente sinónimo de uma boa liderança. Seja por efeito da personalidade de José Sócrates, seja pelos erros tremendos nas escolhas que foram efectuadas - a inclusão num governo minoritário e numa situação de crise de nomes de segunda linha, sem traquejo nem experiência política, rapidamente os transformou em autómatos das decisões do Conselho de Ministros -, o certo é que para além de uma crise económica e financeira grave, estamos a atravessar uma crise de liderança e de autoridade da qual, aliás, Cavaco Silva rapidamente se apercebeu e que lhe tem servido para obter dividendos a tempo da sua reeleição. Eu no lugar dele faria o mesmo, em especial se no horizonte estiver, como acredito que esteja num homem bem intencionado, o interesse nacional.
Num momento em que, não obstante a última sondagem, o PSD continua a dar mostras de uma grande fragilidade interna e de falta de sentido de Estado na sua liderança, José Sócrates não teria nada a perder em fazer rapidamente uma remodelação. O pior erro que um político pode cometer é o de ser capaz de identificar o erro e de não ser capaz de corrigi-lo a tempo de evitar maiores danos para o País e para a sua própria liderança.
Compreendo que José Sócrates esteja cansado, absorvido com as dificuldades imediatas da governação e com a perspectiva, sejamos francos, de ter pela frente, no actual cenário, um resultado menos bom nas presidenciais. São ossos do ofício que não podem servir de desculpa para uma prestação que nalguns domínios da acção governativa já roça o paupérrimo.
Uma remodelação feita já, além de ser prova de atenção e humildade, constituiria uma renovada prova de confiança no País e nas suas potencialidades, um sinal aos mercados da importância que a situação está a merecer e uma forma rápida e indolor de retirar a Cavaco Silva qualquer veleidade de dissolução do Parlamento no pós-presidenciais.
Na verdade, uma remodelação deve ser feita nos momentos de crise, quando importa insuflar sangue novo na corrente e conferir um estímulo acrescido para enfrentar os desafios que se seguem. Uma remodelação feita a tempo e horas, antes das presidenciais, retiraria a Cavaco Silva quaisquer argumentos de dissolver o Parlamento no Verão, tal como é desejo, cada vez menos escondido, da actual liderança do PSD.
É evidente que a remodelação que viesse a ser feita, caso José Sócrates estivesse disposto a correr por essa pista, implicaria um alargamento do campo de recrutamento, trocando figuras apagadas - independentes ou militantes do PS - por gente suficientemente brilhante para, se necessário fosse, ofuscar a sua própria acção, transmitindo ao País a ideia de que ninguém brinca em serviço e que o primeiro-ministro não tem medo da sua própria sombra e da oposição interna.
A valorização da imagem externa do Governo e do País passa também pela capacidade de conferir relevo à crítica oportuna e sagaz, retirando eficácia ao palavroso diz que disse em que a actual liderança do PSD parece estar a especializar-se.
Bem sei que não poder contar com uma oposição credível e decente enfraquece qualquer governo democrático, mas essas também são circunstâncias que escapam à racionalidade e ao controlo dos actores políticos.
A sensação que neste momento se tem de que o País é um barco em dificuldades perante a fúria das vagas, em que a tripulação se reveza a tirar baldes de água das cabines, enquanto o armador (Cavaco Silva) assiste em terra a tudo o que se está a passar fazendo comentários via rádio que são escutados pelas tripulações de todas as embarcações (mercado) que circulam nas redondezas, tem sido altamente contraproducente. José Sócrates pode ter, e seguramente que tem, neste momento uma imagem muito desgastada. E já não falo dos problemas pessoais que o afectaram por causa das guerras da sua licenciatura ou do Freeport. Mas entre a sua tripulação talvez seja possível encontrar gente menos cansada, com experiência de navegação longe da costa e em mares bravios, que seja capaz de lhe dar a mão. Quando está em causa o interesse nacional não se pode ter receio de liderar. Essa seria uma prova de grandeza. Um bom imediato, um chefe de máquinas competente e meia dúzia de tripulantes com provas dadas podem fazer toda a diferença. Acredito que seja essa a forma mais acertada de dar corpo à afirmação feita por Pedro Silva Pereira, na entrevista que recentemente deu ao
Acção Socialista, de que os militantes do PS podem estar seguros de que os responsáveis sabem quais são as prioridades. Admito que sim, mas para mim a única prioridade que importa é Portugal e esta é uma prioridade que exige clarividência e coragem. Não há que ter medo de corrigir os erros de navegação e mudar o rumo, sob pena dos êxitos diplomáticos obtidos serem rapidamente desvalorizados externamente pela falta de liderança interna.
Talvez seja tempo, por tudo isso, de José Sócrates aproveitar a quadra que se aproxima para encontrar uma solução que garanta governabilidade nos próximos doze meses e estabilidade e eficácia ao programa de austeridade.
Pelo caminho (este é o meu lado utópico a falar), talvez não fosse má ideia livrar-se da tralha que na confusão da vaga o socratismo trouxe para bordo, evitando situações que sendo na aparência perfeitamente legais, como dizem, são na essência
altamente reprováveis e que só servem para aumentar a desconfiança dos cidadãos na seriedade das suas instituições, na dos seus dirigentes e, desde logo, na dos partidos políticos, sem os quais a democracia jamais sobreviverá.