terça-feira, abril 24, 2012

Em Abril, lágrimas mil

"A nobreza está presente onde quer que exista a virtude, mas a virtude nem sempre está presente na nobreza" - Dante

Não sei se alguma vez já se deram conta, mas há duas coisas que um estafermo não pode ter: dinheiro e poder. Dinheiro porque assim que o tem tende a imaginar-se o maior e com a maior desfaçatez convence-se de que é simples, fácil e barato comprar os outros para  obter os seus favores. Poder porque alcançando-o se crê superior, não raras vezes acabando por tentar fazer da humilhação dos seus semelhantes um exercício lúdico destinado a fortalecer esse mesmo poder. Uma das coisas sem a outra, em regra, não causa qualquer mossa à sociedade. Se tiverem riqueza sem poder limitar-se-ão a ostentá-la e a gastá-la à semelhança do que faz qualquer trolha numa taberna quando tem os bolsos cheios. Se ensaiarem exercitar o poder sem riqueza só terão um caminho: ou fazem-no de forma competente e serão aplaudidos ou, sendo incompetentes no mando, serão corridos na primeira oportunidade por aqueles que governam. O problema é quando os estafermos adquirem dinheiro e, por via dele, poder, ou, noutros casos, conquistando o poder conseguem depois enriquecer. 

Os exemplos nas empresas e na nossa vida política são imensos. O 25 de Abril, na generosidade de espírito e entrega de homens como Salgueiro Maia ou dos políticos que asseguraram contra ventos e marés uma transição serena e uma consolidação irrepreensível, ao restituir a liberdade e a democracia ao povo foi tão longe nesse gesto magnânimo que condescendeu com o enriquecimento e a conquista de poder por um bom punhado de estafermos.

Trinta e oito anos depois voltamos a estar sob intervenção externa, entregues à bestialidade de quem não foi capaz de reconhecer, nem de se reconhecer, nos valores e princípios que enformam o nosso contrato social. E que se alguma vez os reconheceram e proclamaram tal só aconteceu transitoriamente enquanto instrumento de conquista do poder e de riqueza, o que fizeram de modo abusivo e fraudulento, enganando aqueles que neles confiaram, desvirtuando e hipotecando sem qualquer pudor o sonho de várias gerações de homens livres, sérios e honrados.

A diluição de responsabilidades políticas e institucionais, o crescimento sem rei nem roque de grupos económicos, cliques e gangues de marginais engravatados, ao mesmo tempo que meia-dúzia de investimentos visíveis serviam para ocultar o desperdício e a inutilidade de sucessivos anos de governação, transformados no penoso cumprimento dos formalismos de uma democracia cujos actores se centravam cada vez mais no seu próprio protagonismo e na apologia de virtudes que nem a melhor das lupas permitia vislumbrar, contribuíram para atapetar a nossa vida pública de uma espécie de pasta lamacenta que aos poucos se acumulou e vagarosamente foi alastrando, espalhando-se pelas juntas do edifício democrático, entrando pela porta principal dos partidos políticos e de agremiações discretas, entretanto escancaradas para receberem a riqueza e o poder que os estafermos iam conquistando nas suas actividades de lobbying, tráfico de influências, compra de interesses e de consciências e contratação dos idiotas úteis que nessas ocasiões sempre aparecem, verdadeiros emplastros que dão cor e cara aos esquemas mafiosos que se encostaram aos partidos, ao poder local e a uma administração central prisioneira do atavismo e da desconfiança em relação a todos aqueles que era suposto servir.

A forma hedionda como os partidos políticos permitiram a ascensão de caciques semi-analfabetos e medíocres, que arrastaram consigo as fichas de outros ansiosos por serem como eles, contemporizando com esquemas, ofertas subreptícias e roubos de sacristia que serviram ao seu próprio financiamento e ao pagamento de campanhas eleitorais, colocaram-nos à mercê dos estafermos que deles se quiseram aproveitar.

Muitos chegaram ao poder enriquecendo, rapidamente e multiplicando benesses à custa de uma muito aplaudida, socialmente reconhecida e institucionalmente valorizada, canalhice ascensional, aliás exemplarmente demonstrada pela forma como verdadeiros biltres foram feitos ministros, conselheiros e comendadores, condecorados e endeusados pelos mais altos magistrados do regime. O povo desconfiou, mas sereno como é ia aceitando as migalhas que sobravam dos seus banquetes. Os poucos que, entretanto, caíram em desgraça - por não terem sido suficientemente generosos na distribuição dos réditos e mais cautelosos no apuramento da "matéria colectável" -, foram entregues pelos seus pares, à laia de sacrifício, como forma de protegerem o grosso da coluna. De atirar areia para os olhos de quem há muito desconfiava do sistema de justiça. 

É impossível fechar os olhos. É impossível ignorar. E de nada serve vilipendiar ou chorar. Foi das nossas mãos que saiu o voto. Foram os nossos olhos que se fecharam quando deviam ter estado abertos. Foi a nossa cobardia, o nosso temor pelo risco, a vergonha de nos encararmos limpos e de cara lavada perante o espelho do passado e a vitrina iluminada do futuro que nos deixou arrastar para o atoleiro.

Trinta e oito anos depois perdemos o direito de sindicar o passado e de impugnar os nossos actos. Ninguém espera que os estafermos se retratem. Bem pelo contrário, eles estão aí vivos, bem vivos, no meio de nós, usando a sua máscara veneziana nos momentos eleitorais, distribuindo folhas de coca à malta das jotas, sob a forma de apelos vigorosos à alegria no desemprego, à crença na infalibilidade jacobina - estranho paradoxo - de economistas ditos "liberais" e/ou "neo-liberais".

Precisamos de uma democracia que esteja disposta a correr o risco de sobreviver, que não se deixe iludir pelo ar elegante e bem cheiroso dos estafermos que a condicionam nas escolhas e ainda assim os enganam nas poucas que são feitas, violando de forma inaudita, vergastando e mutilando a honra da república e de todos aqueles que deram o corpo às balas para que este país não fosse uma coutada de estafermos

O percurso que temos vindo a trilhar terá de ser interrompido. Se necessário à bruta. Sempre fazendo uso das armas que a democracia nos trouxe. Pela virtude da palavra. Pelo gesto ousado. Pela escrita vigorosa, clara e descomplexada. Pelo voto. Enfrentando os estafermos no seu próprio campo, no espaço público, que é onde mais lhes dói e lhes faltam os espaços para se esconderem.

Porque sendo naturalmente cobarde, o estafermo, quando acossado no seu palácio, esconde-se da luta nos subterfúgios da democracia. Nos tugúrios da política e nos templos do consumo. Numa democracia não pode haver esconderijos, muito menos um Olimpo onde os estafermos se acolham impunes à espera de uma choruda reforma. Numa democracia não pode haver virgens para serem oferecidas aos estafermos que adquirem riqueza e poder sem mérito. Numa democracia, a gente séria não pode conviver com pulhas e sovinas que singraram sem esforço fazendo favores a outros pulhas e sovinas que foram engordando e ensebando os seus dorsos com a luz, a manteiga e o combustível que os nossos tributos pagaram. 

Porque o esforço que homens como Salgueiro Maia, Emídio Guerreiro, Francisco Sá Carneiro, Sottomayor Cardia, Amaro da Costa, Salgado Zenha, Magalhães Mota, Sousa Franco ou Ernâni Lopes, para só citar alguns, fizeram, não pode ficar dependente da mentira, do disfarce e da ignorância de um qualquer primeiro-ministro, do cinismo dos biltres que o assessoram, de um Presidente da República que se deixa enganar pelo primeiro canalha e se convence de que tem razão, de polícias alucinados que a democracia transformou em empresários e dirigentes empenhados na coscuvilhice, de políticos tão rasteiros quanto mansos na forma como dissimulam e iludem, enfim, de estafermos de carne e osso sempre prontos a servirem e a servirem-se dos outros como de carne para canhão.    

Porque, já agora, não é possível construir uma sociedade livre e democrática, uma sociedade que se reja por padrões mínimos de decência, civilidade e solidariedade social, quando os estafermos se passeiam pelas avenidas, usam aventais bordados a ouro, a miséria é varrida para debaixo do tapete e o Presidente da República está preocupado com a gestão das suas poupanças.

Queríamos, queriam, que as flores de Abril tivessem florescido. Mas as flores de Abril há muito que murcharam, sendo substituídas nas lapelas por uns rectângulos serôdios em plástico que imitam a bandeira nacional. O patriotismo foi transformado numa patrioteira lamurienta, frívola e pirosa, aplaudida por canalhas que depois de terem rebentado com o sistema financeiro exigiram os nossos impostos para taparem o buraco que eles próprios criaram para pagarem dividendos aos que hojem se queixam do valor das reformas.

Os portugueses permitiram a ruptura do contrato social. Acomodaram-se, perderam ousadia, viraram a cara para o lado enquanto o vizinho batia na mulher e nos filhos. Porque não era com eles. Viram os estafermos, qual praga, treparem por todo o lado, ajudados pelos estafermos que já lá estavam e que lhes atiravam cordas e escadas para os ajudarem a trepar mais depressa, empurrando e derrubando, ajeitando-se nos bancos das empresas públicas, atafulhando-se de robalos e de charutos oferecidos por construtores civis, arrotando como porcos à porta do Tavares e rindo alarvemente enquanto se roubava o erário e se desmantelava o Estado.

E a Europa, a Europa senhores, essa só nos reconhece dentro dos estádios para onde atiram as moedas que os mais afoitos recolhem. Rastejando se necessário. Não podemos contar com ela porque ela só conta connosco para assegurar o pagamento dos juros.

Fazer a revolução que nunca se fez, recolocá-la nos carris, não é difícil. Fosse tudo tão simples. Não é preciso voltar à estaca zero, "empobrecer" como dizem alguns cretinos, nem destruir o pouco que se construiu. Bastará abrir os olhos, levantar a cabeça, olhar à nossa volta e correr com os estafermos que se abotoaram com o contrato social, colocando-o ao seu serviço.

Os portugueses não podem ficar eternamente à espera que os resgatem, que apareça um D. Sebastião ou um capitão de Abril que lhes restitua a dignidade e a honra. Os portugueses têm de crescer. Só a eles incumbe o dever de resgatar o contrato social. E podem ter a certeza de que não será o Presidente da República, um Passos Coelho, um Relvas, um Seguro, um Portas, um Gaspar, ou um delirante qualquer das economias, que irá fazê-lo por ele. Nem mesmo o velho Mário Soares que já está em idade de ter o merecido descanso.

Os portugueses têm de arregaçar as mangas, colocar a voz e a pena, e tomar conta do espaço público. Entrando pelos jornais e pelas televisões, elevando a voz nas empresas e nos sindicatos, nos hospitais, nos centros de saúde, nas escolas, nas repartições de finanças, nos tribunais, nas autarquias, arrombando as portas e as grilhetas dos partidos políticos. Libertando-os da canalha, filiando-se neles para exigirem a esses partidos responsabilidades, correndo com os estafermos, e com os seus filhos e afilhados, que tomaram conta deles e das autarquias e que na sombra gerem negociatas e o trade-off da corrupção. Os portugueses terão de fazer funcionar a democracia a toque de caixa se quiserem sobreviver. A democracia terá de ser neste Abril uma verdadeira bomba de fragmentação que penetre as consciências e o tecido social. Não há outro caminho. E que as carpideiras chorem tudo neste Abril, porque o que aí vem não é para flores de estufa. É preciso resgatar a democracia. É preciso secar as lágrimas e voltar a fazer funcionar o contrato social. É preciso libertar Portugal dos estafermos para que a democracia floresça.

P.S. Discordo, embora compreenda, a decisão da Associação 25 de Abril. Mas  é dentro das instituições que a autoridade moral e a legitimidade de quem fez e se afastou tem de ser ouvida. Como Vasco Lourenço tão bem sabe, lá dentro já temos "Rochas Vieiras" que cheguem.      

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