quinta-feira, fevereiro 02, 2012

Sonhar alto

Imagine-se que eu respondia a um anúncio de recrutamento para presidente do conselho de administração de uma empresa em situação económica difícil, que movimentasse milhões  e com potencial técnico e humano internacionalmente reconhecido como sendo do melhor. No anúncio pediam-me para apresentar um programa, a ser executado no prazo máximo de quatro anos, o qual seria submetido à consideração dos accionistas para aprovação, sendo essa uma das provas de selecção. Depois de apreciada a minha candidatura, fui a uma entrevista, recebi os elogios da maioria dos accionistas ao meu programa e foi-me pedido que começasse a trabalhar. Escolhi a minha equipa entre gente da minha confiança, e na primeira assembleia geral foi tudo aprovado nos termos que eu desejava. Tinha, no entanto, um pequeno problema, do qual eu tivera conhecimento atempado e com o qual teria de contar durante o meu mandato. É que no final do mandato da anterior administração, já depois da publicação do anúncio de recrutamento a que eu respondera, foi necessário contrair um empréstimo junto de entidades externas. Não havia hipótese de obter suprimentos internamente e esse empréstimo era necessário para pagar os salários, a luz e a água dos meses seguintes. Durante a entrevista de selecção foi-me perguntado o que pensava eu das condições daquele empréstimo. Foi-me sugerido que desse a minha opinião, uma vez que a seguir, sendo escolhido para o lugar, estar-me-ia destinado cumprir com as condições acordadas. Na altura, pensei que não iria ser fácil, mas convicto das minhas capacidades e da ajuda divina, dei algumas sugestões. Como não queria perder o lugar, ainda que fosse só por quatro anos e sem grandes perspectivas de carreira, manifestei o meu assentimento aos termos propostos e predispus-me, caso fosse seleccionado, a contar com o cumprimento dessa obrigação. Acontece que quando iniciei funções, percebi que a tarefa seria mais complicada do que pensava, pois que tirando um curto período em que ajudei o caseiro do meu tio a gerir a quinta, não tinha qualquer experiência, mas evidentemente não podia dar parte de fraco. Preparei um orçamento, anunciei despedimentos em massa e aumentei os preços dos serviços que a empresa transaccionava. O ambiente tornou-se mais pesado. Os outros membros do conselho de administração, alguns recém-chegados do estrangeiro, andavam completamente aos papéis, mas lá foram todos remando enquanto metiam mais uma bucha, entre pastéis de nata e franguinhos da Guia. À medida que os dias passavam, e muito embora os compromissos fossem sendo cumpridos, a situação agravava-se: alguns sectores começaram a fazer greves, a mercadoria não se escoava, a administração cortou nas folgas, o refeitório fechou e no seu lugar ficou uma máquina de sumos e sandes de uma outra empresa de um dos accionistas que, entretanto, se mudara para a Holanda. Foi então que eu me lembrei de telefonar para uns amigos chineses a pedir-lhes ajuda. Voltaram a não falhar nessa hora difícil e lá apareceram. Entregaram-me uma mão cheia de yuans que muito jeito me deram, mas ao mesmo tempo os meus amigos tiveram a triste ideia de ir visitar alguns ex-administradores que tinham sido dispensados. Uns por incompetência, outros por terem atingido o limite de idade, e outros ainda por terem mau feitio. E resolveram trazê-los de volta para a empresa. Perguntei-lhes qual era a ideia e quem lhes iria pagar. Disseram-me que não me preocupasse. Era por causa de um torneio de matraquilhos. O pagamento não seria comigo nem com a empresa e eles apenas quiseram corresponder ao pedido de um dos meus colaboradores que solicitara o anonimato e entendia que seria conveniente introduzir alguma alegria no trabalho. Calculei quem fosse e não quis fazer-lhes a desfeita. O problema é que na mesma altura me chegou um cliente antigo, primo do Mantorras, que me pediu para lhe dar uma "fatia do negócio" (sic) e, se possível, arranjar colocação a mais dois ou três familiares que queriam vir viver para Portugal porque estavam fartos de ter de sair do Colombo a correr, cheios de sacos, para apanharem um avião para Luanda. Da última vez um deles perdera as leggings que adquirira para uma amiga do Trópico, por causa do reembolso do IVA no aeroporto, e aquilo acabara tudo num pandemónio à chegada quando o desgraçado se apercebeu que o embrulho ficara na Portela junto com as queijadas de Sintra que ele dera ao tipo da segurança para ver se aliviava o excesso de peso na bagagem. Por causa disso ainda hoje um "tio" dela, que trabalhava nos vistos do consulado, continua a dizer aos que lá aparecem que só lhes põe o carimbo nos passaportes se no regresso trouxerem um par das ditas cujas para a fulana. Enfim, lá se arranjaram as coisas, e eu aproveitei a notícia do aumento da produtividade em razão do final das folgas e da abolição do dia da empresa, que se comemorava habitualmente em 5 de Outubro, para convidar uma equipa de um programa de televisão chamado "Tapetes voadores e afins", para vir fazer uma reportagem à empresa, aproveitando a animação provocada pela chegada dos familiares do Mantorras. Estava eu nisto quando me lembrei que tinha uma assembleia geral extraordinária daí a dias. Em causa estava uma eventual reorganização da nossa estratégia de recuperação, de acordo com a proposta de alguns accionistas. Nem queria pensar nisso. Já os tinha aldrabado com o programa que defendera na entrevista de selecção, desculpando-me depois com o encerramento de uma das nossas filiais no Brasil e com as dificuldades do programa informático instalado pela anterior administração, baixara os salários dizendo que a responsabilidade não era minha mas sim do tesoureiro, vendera os camiões da distribuição para poupar nos custos e despedir os motoristas (eram todos comunistas) e cortara na subsidiação das aspirinas e xaropes durante o período das gripes e constipações. Como safar-me na dita assembleia? Pois bem,chegado o dia desfiei o meu rosário: queixei-me da anterior administração, disse que o empréstimo não fora negociado por mim e que houvera uma alteração de circunstâncias - ninguém me perguntou quais - que me fizera abandonar o meu programa. Os números eram incontornáveis. Já havia galinhas mortas debaixo das escadas e nas casas de banho e as fotocopiadoras estavam sem papel. Propuseram-me então reavaliar o programa, renegociar as condições do empréstimo, redireccionar o negócio, voltar a distribuir os nossos produtos. A tudo disse que não. E disse-lhes mais. Disse-lhes que custasse o que custasse o programa, não o que fora aprovado, mas aquele que eu estava a executar, iria ser levado até ao fim. Comigo não havia mudanças, nem renegociações de coisa alguma. Os sacrifícios seriam cumpridos com alegria. E se já havia galinhas mortas a culpa não era minha, quando muito da ASAE que era quem fiscalizava. Que culpa tinha eu que o primo do Mantorras também tivesse trazido um feiticeiro do Huambo, que era quem agora analisava as perspectivas das exportações da nossa empresa, e as usasse para saber qual o caminho que devíamos tomar em função do lado para que ficasse virado o bico delas depois de lhes tirar o sangue para uma cabidela? Nesse momento fui interrompido por um dos minoritários. Um amigo dos meus tempos de militância na jota que passara por um seminário e agora usava fatos castanhos com gravatas lilazes porque era adjunto de um ministro. Bom tipo. E também estafermo desde que passara a ter telemóvel pago pelo gabinete e criara uma base de dados por causa dos números do euromilhões. Vira-se para mim e diz-me que assim vamos ter de fechar a empresa. Os outros olharam-no desconfiados. Eu também. Eu sabia que era uma questão de meses mas não podia dizer-lhes isso. Ainda faltavam dois anos para o Mundial de Futebol e o meu padrinho dissera-me para aguentar. O contacto dele no Rio de Janeiro, um libanês de bigodaça que fora conselheiro de Estado, já lhe tinha garantido que me daria emprego nessa altura. Antes não porque as secretas andavam muito activas e já tinha constado que havia aventais "made in China" com o logotipo da empresa a serem vendidos ao desbarato na Feira da Ladra e na Rotunda do Relógio por uns adeptos do Besiktas que tinham acabado de chegar de Istambul. Coisas do Quaresma. O costume. Vai daí, puxei da minha voz de barítono e disse-lhes: esta empresa não fecha, nós vamos salvá-la. E rematei dizendo, impante, daqui não sai ninguém. Ainda pensei acrescentar "vivo ou morto", mas já não fui a tempo. Vindo das minhas costas, ouviu-se um grito. A sala emudecera. Gelou. Sentiu-se o frisson. Lá atrás, com um facalhão espetado e a pingar numa mão e uma cabeça de porco na outra, a esvair-se em sangue, estava o feiticeiro do Huambo. Tinha uma espécie de orelhas de burro douradas enfiadas no alto da cabeça, e vestia uma tanga de leopardo com setas cor-de laranja de onde pendiam umas fitas verdes e vermelhas. Dos seus olhos esbugalhados, vidrados, saiu uma boca enorme, com os dentes muito brancos, e a frase que me salvou. Recordo-a com emoção. Foi com ela que se encerrou a assembleia geral: "Já não temos galinhas para a cabidela, mas o porco diz-nos que a empresa sobreviverá sem as exportações". Fugiram todos. Até os credores. Até hoje.

Agora estou reformado da vida empresarial. Resolvi sair da minha zona de conforto. Jogo golfe, sou consultor para os países lusófonos e tenho um pequeno negócio de "import-export" para me manter ocupado. Em rigor, exporto leggings para Angola e aventais para o Brasil (era previsível). Na volta recebo divisas, que coloco numa dependência da CGD, nas ilhas Caimão, e vou a programas de rádio e televisão. O feiticeiro, esse, continuo a vê-lo de quando em vez. Deixou de usar tanga e sei que aproveita as horas vagas para organizar workshops com a Maya a pedido do Fisco. Meteu-se na política, conseguiu a nacionalidade e vai ser condecorado.

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