1 de Janeiro de 2011
Com excepção do dia em que jurei a mim mesmo deixar de fumar (cigarros, regularmente, em 1 de Janeiro de 1993), coisa que pegou no dia em o Miguel V. me xingou a viagem toda de Casal Velho para Lisboa por causa do fumo dentro do carro e do frio que entrava pela janela, não sou de fazer juras em cada dia primeiro de Janeiro. Só tenho força de vontade para aquilo que considero verdadeiramente importante. Deixar de fumar foi uma delas. Começar a escrever estas linhas foi outra.
Antes de prosseguir quero avisar a quem vier a ler estas linhas de que nesta coisa dos diários sou um neófito, com todos os prejuízos e danos para a minha imagem que daí podem advir. Como escreveu Marcello Duarte Mathias (cada vez gosto de mais de relê-lo porque há poucos, muito poucos, como ele, na elegância, no estilo e na simplicidade com que trata a língua), “não há coisa pior do que os neófitos: seja de Deus, do sexo ou da política”, mas de uma coisa tenho a certeza, é que amanhã já não serei neófito. E depois, à medida que este diário público e em letra de forma for surgindo, as pessoas ir-se-ão habituando. Esquecendo.
Um diário é datado e a datação limita-o. É a sua marca genética. Mesmo quando alguns anos depois o relemos, sem prejuízo de podermos transportá-lo para o presente, ele permanece encaixado num ponto que foi. Em todo o caso, quando a memória começa a falhar, e ela amiúde já falha, permite-nos manter um referencial em relação a nós mesmos.
Registar factos é próprio de outro tipo de homens, é coisa de especialistas. Eu prefiro ir registando as minhas dúvidas, as minhas perplexidades, as minhas convicções. Para que não me esqueça delas. Não me perdoaria esquecer aquilo que para mim foi importante. Pequenas rotinas, lampejos de um momento, a memória. A memória é uma espécie de beijo. E numa terra de beijoqueiros há que ser selectivo. Na memória só podem ficar registados os bons. Ou os que marcam por uma razão ou por outra.
Não penso que esta quadra, ano após ano repetida de acordo com o calendário judicial, que aos poucos foi substituindo o religioso, suspendendo prazos e trocando-os por cartões de Boas Festas, sms cheios de “k” e notificações do Fisco, faça esquecer o verdadeiro sentido do Natal, a anteceder a entrada de um Novo Ano e a caminhada dos Reis Magos. A comunhão que a quadra envolve, o sentido de recolhimento e partilha que vejo nela (muito mais do que os embrulhos de circunstância e o final de concursos televisivos medíocres) faz-me repetir, apesar de tudo, alguns momentos que reservo para mim depois dos outros se recolherem. Há o disco que se repete (sublimes os duetos de Aznavour com Sting e com Nana Mouskouri), o livro que se relê, o charuto que em cada ano regressa enquanto o seu fumo persegue a vela que teima em arder aromatizada pelas fragrâncias da moda.
Ouvi de relance a Clara Ferreira Alves (há mulheres que nos fazem gostar mais das mulheres) referir esta noite qualquer coisa como “a carteira de cumplicidades do BPN”. Parece que ela gostava de vê-la esclarecida. Eu também. Mas da maneira que este país está, perguntar a Cavaco Silva (ele que até já fala na "ética republicana") o que o levou (e já agora à sua filha) a comprar acções do BPN/SLN não cotadas em bolsa, tentar esclarecer quem as recomendou (e quem foi o figurão que tratou da burocracia) e como as coisas se processaram entre o momento da aquisição e a decisão de venda, incluindo as verdadeiras razões da respectiva valorização, é mais ou menos o mesmo que acontecia há uns meses quando se perguntava por uns desenhos da Cova da Beira, umas licenciaturas “esquisitas” ou umas offshore impertinentes. Qualquer que seja a cor, o fundamentalismo é sempre o mesmo quando por detrás dele está a subserviência enfatuada ou a crença na infalibilidade do testemunho.
Pedro Marques Lopes, participante no mesmo fórum da Clara, dizia que o caso BPN vai ser uma espécie de “Vale e Azevedo 2”; para logo a seguir acrescentar que “foram feitas vigarices absolutamente gigantescas” (sic na SIC-N), recusando-se a acreditar que “aquilo” fosse obra de um homem só.
Eu também não acredito. Penso que ambos têm a razão. A Clara mais do que o Pedro.
Por vezes gostaria de ter mais distância. A distância dá-nos outra liberdade, mesmo quando teimamos em querer manter a lucidez. E se eu prezo a lucidez. Dá-me outra liberdade. Não é fácil. Em especial quando, como também escreveu “o” Marcello – os autores que apreciamos tornam-se íntimos ao fim de algumas obras: eles partilham a escrita; nós, leitores, vamos sublinhando-lhes as frases, as metáforas, as hipérboles, e, no caso dele, a serena e elevada lucidez que há tantos anos o acompanha –, se vive num país que é “uma coutada de compinchas”, de “valores entendidos que se ajudam e promovem mutuamente”, que não admite “que alguém que não lhes preste vassalagem nem navegue nas mesmas águas, possa ter mais talento do que eles sem deles depender”. O general Rocha Vieira também era assim em Macau, coisa que o general Eanes não sabe, não percebe nem conhece, quando lhe prefacia os livros de tom laudatório e adolescente que a Gradiva edita (o Guilherme é um homem bom e inteligente mas livros daqueles dão a ideia de que está a agradecer os serviços que prestou ao tipo).
Abomino tanto a presunção quanto a avareza e a pelintrice.
Enfim, há alturas em que tudo se torna mais verdade. Também mais doloroso. E desta vez, raio de lembrança, a Lusa e o Afonso Camões não têm culpa do estado a que tudo isto chegou. Seria injusto negá-lo. Já não é Natal. Mas quem diria que foi 1 de Janeiro?