domingo, dezembro 31, 2006

UM NOJO



Deitei-me ontem à noite com a notícia da execução de Saddam Hussein. Acordei esta manhã com a imagem dele, de baraço à volta do pescoço.

Se ao erro da guerra sucedeu o erro de um julgamento fantoche, seguido de enforcamento “ao vivo e a cores”, isso não significa que haja necessidade de se persistir no erro. E o erro, neste caso, mete nojo. Não sei a quem possa interessar a repetição ad nauseam das imagens da execução de Saddam. Como se não fosse já suficiente termos tido acesso aos actos preparatórios da execução, logo apareceu alguém com essa praga dos anos modernos chamada telemóvel a gravar em directo e na íntegra as imagens da execução, que logo as televisões se apressaram a reproduzir. Estas últimas definem bem o que tem sido o desastre iraquiano e reflectem a insânia, o servilismo e a falta de pudor que se apoderou do Ocidente e da sua comunicação social.

As imagens da execução de Saddam marcam o regresso à idade das trevas. Não das trevas tecnológicas, mas ao abismo ético e moral, aquele em que hoje irresponsavelmente medramos.

Depois de ter feito ontem uma visita particularmente sensibilizadora ao Refúgio Aboim Ascensão (Faro), onde durante mais de duas horas vi o esforço que gente modesta, empenhada e anónima faz pela construção de uma sociedade mais decente, onde pude ver o sorriso terno, doce e ingénuo de centenas de crianças vítimas de uma sociedade que as abandona e continua a ignorar os velhos, não podia deixar de manifestar aqui, na única tribuna que me resta, a minha repulsa, o meu asco, pela dupla barbárie que constituiu a execução do ex-ditador e a divulgação das imagens daquela.

Não sei se será com exemplos destes que se conseguirá a pacificação do Iraque, o progresso da Europa, a diminuição da sinistralidade nas nossas estradas ou a melhoria da qualidade de vida das nossas crianças. Mas de uma coisa estou certo: são exemplos e imagens como as que vi que me continuarão a enojar e me obrigarão a gritar, até que a voz me doa, e a escrever, até que a electricidade falte ou o computador pife, que não é esta a democracia por que luto, não é esta a minha liberdade, não é esta a sociedade que quero construir. A violência gratuita e sem sentido não pode continuar a fazer escola num mundo minado pela guerra, pela fome, pela doença, pelo abandono infantil, pela miséria moral. Poderá não servir para nada, e disso me perdoarão os mais sensíveis, mas nesta altura só me apetece perguntar se não há ninguém que possa mandá-los para a p...* que os pariu.

Oxalá que 2007, mesmo que não traga mais nada, possa emprestar alguma inteligência à sua alma e lucidez aos seus espíritos.
* - censurado num rebate de consciência

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