terça-feira, julho 02, 2013

A carta

Verdade seja dita que em cada dia que passa me sinto cada vez mais distante de Portugal e dos portugueses. E no entanto estou no meio deles, vivo no meio deles, penso no meio deles. Às vezes também com eles. Os meus defeitos serão os deles, as minhas virtudes, se algumas tiver, também serão as deles. Não consigo, talvez por isso, pensar em "off" da mesma maneira que outros conseguem falar. Dentro de mim tudo se passa em "on" e o "off" será sempre um prelúdio do fim.
 
Confesso que tenho alguma dificuldade em perceber os ínvios caminhos de algumas inteligências que têm o condão de transformar em obscuro o que é claro, de substituírem a transparência pela opacidade, de confundirem um segmento de recta com uma elipse.
 
Numa democracia adulta, com gente séria e intelectualmente honesta, a comunicação não tem segredos, a informação é facilmente acessível a qualquer cidadão e a interpretação dos factos estará sempre balizada pela realidade. O vazio não faz parte da cartilha comunicacional.
 
É certo que a ironia não sofrerá do mal de ausência, mas será sempre de mau gosto ironizar com o corpo ainda quente do moribundo. Porque ele poderá sempre despertar, ressuscitar, voltar ao mundo dos vivos, ainda que o faça em "off", enquanto os seus olhos rodam pela distância que os separa daqueles que procura encontrar.
 
A carta do ex-ministro de Estado e das Finanças não é um testamento político. Menos uma justificação de modéstia. Vítor Gaspar resolveu fazer uma partilha em vida e deixou preparada a habilitação de herdeiros. E isso justifica a chamada de Maria Luís Albuquerque à pasta das Finanças. Não há nisto nada de irónico. Ou de meteorológico, para recordar o almanaque de que todos falam. 
 
O legado que fica nem sempre representa o resultado de uma vida de trabalho. Por vezes será apenas o produto de uma vida vivida em "off", mesmo quando bem vivida.
 
O que ficou não constitui uma confissão de impotência, não significa um acto desesperado, nem é o epílogo de um período conturbado. E não será, seguramente, um acto de lealdade política ou de agradecimento. Uma carta constituirá sempre um testemunho para a posterioridade. Em "on". Tudo o que de bom ou de mau contiver ficará indelevelmente gravado.
 
Eu prefiro os que pensam, dizem e escrevem em "on". Sem rede. O incómodo que isso provoca é não raro uma forma de nos trazer à realidade, de nos fazer olhar à nossa volta, de nos ajudar a crescer.
 
O mesmo não digo da hipocrisia em "on". Esta não é um problema de carácter. Nem sequer da falta dele. É um problema de visão. Mas entre a falta desta em "on" e a franqueza em "off", ainda assim prefiro a primeira. 
 
Numa democracia a decência está sempre em "on". Numa democracia a gente séria não teme as palavras; sabe reconhecer os gestos, e responsabiliza-se. Gente séria não teme a transparência, enquanto qualidade que nos permite ver e inferir, ou os juízos que outros façam das nossas acções. Gente séria não funciona em "off". Está sempre em "on". Os outros, se quiserem, poderão sempre repudiar o legado. Em "on". De outro modo não funciona.    

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