A razão, salvo raras excepções,
nunca está só de um lado. E por vezes é conveniente deixar passar o alarido
para se poder olhar com distância e claridade para os factos.
Os “episódios Miguel Relvas” são
apenas o culminar de um processo de apartamento dos cidadãos dos seus actuais
governantes que nada tem de novo nem de particularmente relevante. O que neles
há a notar é a rapidez da erosão, a que não será alheia a degradação da
situação social, política e económica a que temos assistido. A cara-de-pau do
ministro das Finanças, depois de falhar todas as metas de 2012, a comunicar ao
Parlamento que se havia enganado nas contas em 100%, é disso mesmo o melhor
exemplo.
Posto isto convém dizer que a
democracia não está em causa, que as liberdades e os valores constitucionais não
foram postos em causa, e que tudo não tem passado de atitudes de rebeldia e
propaganda às quais o ministro Relvas tem emprestado o seu estímulo.
Convenhamos que as coisas só têm
a importância e o relevo que se lhe queiram dar. O que aconteceu com Passos
Coelho na Assembleia da República no último debate era previsível que se
repetisse depois de um grupo de comandos ter feito ecoar o grito de guerra no
parlamento. Nessa altura eu critiquei a atitude por muito compreensível que
pudesse ser, mas sabia que iria criar um mau precedente. Não me enganei. Na
ocasião nem a senhora presidente da AR veio pedir a evacuação das galerias, nem
a bancada do PSD, nem o cronista Henrique Raposo, se queixaram.
Agora que as coisas começam a
piar mais fino já vêm falar, imagine-se, em fascismo. São eles e Mendes Bota
quando este há uns anos comparava a ASAE a uma “nova PIDE”. Haja decência e
tino, senhores.
Evidentemente que o que se passou
no Clube dos Pensadores ou no ISCTE não é nem foi bonito. Porém, importa também
perguntar qual a medida de participação de Miguel Relvas para o que aconteceu. Com
Passos Coelho e Paulo Macedo os protestos fizeram-se ouvir. A seguir os
manifestantes calaram-se ou foram-se embora e tudo prosseguiu. Com normalidade.
Uns protestaram, os outros discursaram.
De diferente nos “episódios
Relvas” foi a provocação, foi a petulância.
Quando um ministro com a pose, o
estilo e a arrogância de Relvas, se predispõe a participar num protesto em que
ele é o visado, ensaiando cantar de forma desafinada e sem sequer conhecer a
letra uma canção simbólica da democracia portuguesa, só pode estar a querer
gozar com aqueles que se manifestam.
De igual modo, quando um ministro
cujo currículo académico e profissional tem tanto de medíocre quanto de sofrível
e de nebuloso, com um diploma feito de equivalências e folclore, que nem a
privatização de um canal da RTP conseguiu levar a bom porto, depois de andar a
atirar foguetes no Copacabana Palace com Dias Loureiro e Marques Mendes, e mais
a mais numa altura em que os estudantes mais carenciados não têm bolsas nem
dinheiro para propinas e o país sofre a bom sofrer com a insânia dos
economistas ao serviço do Governo, se predispõe a discursar numa das melhores
escolas públicas portuguesas sabendo que a hostilidade em relação à sua figura
vem em crescendo, só pode estar a provocar o pagode.
E a sua falta de vergonha e de
senso é tão grande que nas tristes imagens que se viram ainda deu para ouvir Sua
Excelência a dizer à segurança, que naturalmente não lhe fez a vontade, que queria
sair, naquelas circunstâncias, pela porta por onde tinha entrado, no que não
pode deixar de ser entendido como mais uma atitude provocatória e de desafio.
É verdade, nisso estamos todos de
acordo, que o que se viu no ISCTE ou há dias em Gaia foi lamentável e não pode ser
acolhido por ninguém. Não há “arruaças democráticas”, não há “enxovalhos
democráticos”, não há “insultos democráticos”. A democracia tem de saber conviver
com os excessos de alguns e há mecanismos para corrigir esses excessos.
Por isso mesmo, antes de se
apontar o dedo aos “indignados”, seria bom que Passos Coelho e os membros do
seu governo, em especial Miguel Relvas, percebessem, como escreveu Tony Judt,
uma coisa muito simples: “A seriedade moral na vida pública é como a
pornografia, difícil de descrever mas imediatamente identificável quando a
vemos. Descreve uma coerência de intenção e de acção, uma ética de responsabilidade
política. Toda a política é a arte do possível. Mas também a arte tem a sua
ética”.
De outra forma, como esse mesmo
autor também escreveu, a política transformar-se-á num fraco produto do qual só
sairá o tagarelar constante e uma retórica infindável para disfarçar o vazio.
Não creio que Judt conhecesse o ministro Relvas e se estivesse a referir a ele.
Daí que as suas palavras tenham ainda mais significado quando se olha para o
que se passou entre nós.