terça-feira, maio 15, 2012

O renascer da Europa dos cidadãos

Ao Miguel Portas,
que tanto lutou
pela consolidação de uma Europa
mais justa e solidária para todos os europeus.


"Dal mio punto di vista, sul piano della politica europea, il governo tedesco sta facendo poche cose giuste e molte cose sbagliate. Lo slogan Più Europa è la risposta giusta a una crisi dovuta a un difetto di costruzione della comunità monetaria. La politica non riesce più a compensare gli squilibri economichi che ne sono nati." - Jürgen Habermas, la Repubblica, 12/03/2012, texto que também saiu no último número da Reset

Um dos grandes defeitos da esquerda moderna, admitindo implícita nesta definição que existe uma esquerda que não se rendeu à Terceira Via, ao tacticismo eleitoral e ao conúbio com os mercados que nos trouxeram até à crise que a Europa vive e de que são espelho não só a situação na Grécia, em Portugal, na Irlanda, em Espanha e em Itália, mas igualmente as dificuldades recentes vividas na Bélgica e na Holanda, cujo governo acabou de cair e prepara eleições, e também em França e na Alemanha, sendo que neste dois últimos casos foram os resultados eleitorais de François Hollande e a dolorosa derrota da chanceler Merkel nas eleições regionais do mais populoso dos Estados alemães - Renânia do Norte-Vestefália - que mais marcam, é de por vezes tomar a nuvem por Juno e embandeirar em arco com o primeiro sucesso que traga os cidadãos para a rua. Na rua pode-se marcar a agenda, mas eleições ganham-se nas urnas.

Ora, esta é exactamente a primeira lição que se deve retirar da vitória de Hollande e dos resultados na Renânia do Norte - Vestefália. A forma sobranceira como o directório europeu se comportou na actual crise, o modo como a Alemanha e a França empurraram a Grécia para a catástrofe, dando azo ao fortalecimento de uma extrema-direita neo-nazi e xenófoba, que muitos julgavam banida do solo europeu, e a atitude de Nicolas Sarkozy de estigmatizar o discurso de esquerda, ao mesmo tempo que tentava ridicularizá-lo, esquecendo que a esquerda é ainda hoje para o mal e para o bem o depósito das convicções e da esperança de muito milhões de europeus que vivem a democracia diariamente e não se conformam com as grilhetas dos mercados, ilustra bem que ao subestimar a força das urnas com uma retórica de ocasião, Sarkozy e Merkel se esqueceram dessa verdade elementar, pagando hoje o preço dessa ousadia.

Por outro lado, como bem sublinhou Habermas, não pode haver aprofundamento da integração europeia e da democracia sem um reforço da integração dos cidadãos e da participação cívica dos europeus que modere a tendência dos Estados da linha da frente de decidirem primeiro, a seguir apresentarem a factura e só depois explicarem. A liberdade e uma democracia efectiva não são compatíveis com a ignorância histórica, a incompetência, acefalia e a acrisia de que alguns responsáveis europeus deram mostras.

Bem sei que a falta de estatura política, intelectual e cultural de muitas das lideranças europeias recentes, não só em França ou na Alemanha, como também no Reino Unido e em Itália, sem esquecer Portugal, que pelo menos desde 2005 não tem sequer um primeiro-ministro que possa mostrar o mérito do seu currículo político, académico e profissional na Europa sem corar de vergonha, tem contribuído para cultivar uma espécie de agenda de conveniência, incapaz de ver a médio e o longo prazo, não obstante os esforços da presidência da União Europeia - verdade seja dita, mérito de Durão Barroso - que percebeu mais cedo do que os demais a necessidade de se aproximar a Europa dos cidadãos e de inflectir o caminho.

É hoje evidente para qualquer pessoa sensata que o desvario de alguns países da zona euro só foi possível com a conivência ao longo de anos da Alemanha da senhora Merkel e dos banqueiros alemães, que enquanto retiraram lucros à custa do endividamento do Sul e foram crescendo à sombra do consumismo fácil dos seus parceiros menos previdentes, não deram a atenção devida ao que se estava a passar e até mesmo aos avisos que amiúde foram chegando de algumas agências de rating, as tais, pensando que a tendência em direcção ao abismo se inverteria por simples magia dos mercados financeiros, mais preocupados com as possibilidades de gerarem lucros especulativos rápidos do que em introduzirem alguma racionalidade na suas decisões.

Por via da forma complexada como o Norte sempre olhou para o Sul, incapaz de compreender que a construção da Europa passará sempre pelo conhecimento do outro, a Alemanha cavalgou a onda enquanto pôde, esquecendo que Weimar não é, nem nunca será, um mero capítulo, por sinal bem infeliz, na história da Alemanha e da Europa. A simples perspectiva das eleições gregas terem de ser repetidas, a incapacidade da democracia helénica gerar um governo estável e a cada vez mais que provável saída da Grécia da zona euro, mais do que uma derrota dos próprios gregos, é uma derrota da Alemanha e do espartilho que contra todos os avisos quis impôr aos outros.

A arrogância, falta de sentido europeu e cegueira ideológica do eixo franco-alemão, que chegou a raiar o cretinismo, aliás devidamente coadjuvada por alguns bandarilheiros de segunda e terceira linha, desejosos de mostrarem serviço e que logo se apressaram a aprovar as alterações ao novo Tratado Orçamental, colocou a Europa num impasse do qual só sairá, felizmente, com a ajuda do novo presidente francês e dos europeus.

Não se trata de pura e simplesmente colocar um ponto final na austeridade e voltar ao tempos do alegre gastar, pecha que, olhando-se para a Itália de Berlusconi e Bossi, se revelou não ser monopólio das esquerdas, mas de pensar a Europa como um espaço de cidadania, com regras claras e sensatas, designadamente em matéria orçamental, fiscal e financeira, que permita aos europeus, a todos e não apenas a alguns, viverem de uma forma decente, equilibrada e solidária, única via para o restabelecimento da paz social e da coesão entre os povos europeus.

Esse caminho está mais próximo. Se a vitória de Hollande e a derrota da CDU na Renânia do Norte-Vestefália são sinais de esperança, a recente tomada de posição do SPD quanto às condições para que o Tratado Orçamental possa ser aprovado em Berlim, já são mais do que uma garantia. São a certeza de que os europeus entendem chegado o momento de assegurar condições de participação democrática que mantenham vivo o sonho europeu num quadro de estabilidade política, coesão social e crescimento, que afaste o espectro de um desemprego global e o aumento do fosso entre os ricos e os pobres e remediados.                 

P.S. Como se vê pelos acontecimentos que se seguiram, a ridícula figura feita por Passos Coelho e pelos seus acólitos que no Parlamento português aprovaram apressadamente e sem pensar o Tratado Orçamental, ignorando uma salvaguarda pequena que fosse nessa posição, deverá ser vista como mais um murro no estômago, mas também como uma cacetada na ignorância e na sobranceria de que o Governo continua a dar mostras e que em nada contribuiu para o reforço da nossa posição na Europa.

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