“Ele passara por aquele período de idealismo em que por vezes preludia também a formação dos tiranos, e de tal período não restava nele maior vestígio do que o da larva no insecto alado. Poder-se-ia triturar tudo e depois analisar, sem descobrirmos no seu organismo uma só célula forjada para servir outra coisa que não fazer bons negócios.” – Italo Svevo, Una burla riuscita (tradução de Vasco Gato)
No seu poema “Ressurreição”, de “Máquina de areia”, o imortal Rui Knopfli escreveu nos idos do primeiro semestre de 1963 que
“o regresso ao sol é o regresso
ao princípio, porque o sol tem
o brilho novo do princípio
e as coisas têm o ar estranhamente
fresco do primeiro dia da criação.”
Knopfli foi um génio.
Quem conheça Knopfli e o pequeno texto de Italo Svevo acima transcrito e a seguir leia a entrevista que o ministro Miguel Relvas deu ao Expresso dificilmente não concluirá estar na presença do herói falhado de Svevo. Num novo regresso ao sol.
Quem, com distanciamento, sem falsidade, e um módico de atenção, se der ao trabalho de ler a entrevista será obrigado a nela ver um tremendo exercício de cinismo, de hipocrisia em estado puro, de umbigismo. A entrevista do ministro Relvas não foge daquele que tem sido o modelo seguido desde que há alguns anos se guindou a posições de poder, se tornou influente na estrutura maçónica e se julgou no dever de dar entrevistas para manifestar o seu “pensamento”.
Com a atenção que o assunto merece – o ministro é um modelo do abrilismo pós-revolucionário de vocação mediática e a entrevista uma pequena “maldade” do jornal que toda sua inteligência desprezou –, vale a pena perceber algumas das suas palavras, em especial porque o ministro Relvas tropeça na sua própria sombra e “percurso”. Normalmente, quando assim acontece, não é preciso ler nas entrelinhas. Basta ler o vertido nas folhas do jornal.
Cinismo porque dificilmente alguém que não estivesse subjugado pela imagem e odor do seu poder actual se predisporia a dizer, tendo ascendido às posições que ascendeu da forma que é por de todos conhecida, em resposta a uma pergunta sobre este Governo, que tem dois slogans – “austeridade e reformas” – que foram bandeira de um anterior governo do PSD chefiado por Durão Barroso, e que o próprio Miguel Relvas e Manuela Ferreira Leite integraram, que a diferença entre os dois está em que este, o actual, “tem uma estratégia”. Tão sibilina frase conduz-nos inevitavelmente a secamente concluir que o Executivo que ele antes integrou, chefiado por Durão Barroso, não tinha estratégia. Foi um equívoco. Bom, mas um equívoco, repare-se, dirigido por “um dos políticos mais notáveis da sua geração”. Sim, ele mesmo, Durão Barroso. Imagine-se agora o que teria sido se não tivesse esse estatuto.
Se Relvas fala verdade quando diz que Durão Barroso, “um dos políticos mais notáveis da sua geração”, conseguiu ser presidente do PSD, vencer eleições, formar governo e a seguir ser escolhido como presidente da Comissão Europeia, sem ter sequer uma estratégia de governo, imagine-se o que seria de Portugal neste momento se o homem não tivesse o currículo que tinha.
Incompreensível é que Miguel Relvas, um espírito superior, não se tenha então importado de fazer parte de um Governo que não tinha estratégia. Que hão-de os portugueses pensar de tal atitude? Serviço público? Só pode ser isso, porque o actual ministro, que ao tempo já o era, poderia ter aproveitado esse tempo para prosseguir os estudo, como fez agora José Sócrates, ou incrementar as relações entre Portugal e o Brasil, com as qualificações que já tinha, mas preferiu servir o País num Governo sem estratégia, atrasando as inadiáveis reformas e permitindo a ascensão de José Sócrates. Quem sabe se não foi por isso que estamos como estamos?
Temo ser mal interpretado, mas o entrevistado foi o mesmo que logo a seguir referiu que as declarações que o Presidente da República tem feito são uma ajuda para Portugal e representam o lado “modular do nosso sistema político”, complementando o discurso do Governo. O Presidente da República a esta hora já deve estar a pensar entregar as suas poupanças ao mesmo banco com o qual o ministro Relvas fez um “contrato de gestão discricionária” (?) da sua conta bancária.
Esse tipo de discurso deve ser ainda um resquício do lado “facilitador da realidade” que Miguel Relvas atribui a António José Seguro e que o entrevistado, sem rodeios, reconhece ser a o papel da oposição. Da oposição, senhor ministro? E o senhor está de acordo?
Não quero ser provocador, mas se é esse o papel que o senhor ministro Relvas atribui à oposição, como conciliar esse “discurso facilitador da realidade” com o discurso da transparência e da verdade que Passos Coelho reivindicou como seu? O mesmo que, segundo ele, justificou uma vitória eleitoral e a chamada de Miguel Relvas ao Governo?
Compreendo tal atitude por parte de quem humildemente confessou ter “uma vida para além da política”. Não tenho dúvidas. A avaliar pelos amigos que ainda recentemente um semanário refere como sendo os do ministro do outro lado do Atlântico. O que o jornalista do Expresso se esqueceu foi de perguntar ao entrevistado que teria sido dele, sem profissão, emprego ou qualificações relevantes, sem a JSD e a política. Ele que em tempos confessou numa outra entrevista ter saído do Parlamento, homem feito, para ir trabalhar, fazer-se à vida, estudar, ganhar dinheiro. Verdade se diga que o fez muito bem. E com rapidez. Reconheçamos-lhe o “mérito”. De quem já foi “convidado para tanta coisa na vida”, outra forma de, digamos, desenrascanço não seria de esperar.
Quem me dera poder falar assim. Perceberão que não possa fazê-lo. Nem todos se podem dar ao luxo de ser referenciados nos jornais e revistas como sendo membros influentes de uma poderosa loja maçónica e, ao mesmo tempo, com igual transparência afirmar quando questionado sobre a sua eventual filiação maçónica, que “a vida privada de cada um, a cada um diz respeito”, com a displicência de quem logo a seguir e na mesma entrevista, ao ser perguntado sobre se acha bem “figuras públicas pertencerem a sociedades secretas”, asserção que todos os mais recentes grão-mestres contestam, se permite dizer que “hoje em dia tudo é público”. É? Quem diria? Então por que razão não assumiu sem rodeios a sua filiação maçónica? Ser maçónico diz respeito à vida privada? Há alguma coisa que o envergonhe ou lhe impeça numa sociedade livre e democrática de assumir a sua condição maçónica?
Eu, ao contrário dele, nunca fui convidado para muita coisa. Diria mesmo que, tirando algumas festas de amigos e conhecidos, nunca fui convidado para nada. Vá-se lá saber porquê. Mas, curiosamente, para a Maçonaria, tal como a Assunção, também fui convidado. Logo eu, um pelintra, fora da política, sem ligações a Angola, ao Brasil, à Zona Franca da Madeira ou a Ângelo Correia e com cada vez menos amigos. É verdade que se posso dizer que se (ainda) não aceitei o convite foi por continuar ingénuo e temer encontrar lá um Relvas. E outros como ele. Todos de avental e sorriso acolhedor para avaliarem as minhas “pranchas”. Manias.
Maria Filomena Mónica, com a elegância que se lhe colou à pele e à escrita, escreveu na sua crónica do Expresso: “a reportagem sobre os empenhos que o “Público” publicou, a 27 de Novembro último, é deprimente. Os portugueses aceitam a cunha como natural, o que corrói a alma, mina o esforço e prejudica a economia. Infelizmente, Portugal nunca foi, nem é, um país meritocrático”. De facto, há coisas terríveis.
Olhei para mim, vi-me reflectido no espelho que estava ao meu lado. Estranhamente, não foi a minha imagem que apareceu. Por momentos vi-me dentro do fato – terno ou paletó - do ministro Miguel Relvas. Ao lado de Passos Coelho e do seu olhar severo, enquanto lia o embuste perfeito de Italo Svevo. Senti-me transparente, incapaz de dissimular o espanto. Há amizades como a do texto de Svevo, entre Mario e o caixeiro-viajante, que nunca deviam conhecer a luz do dia. Para não nos traírem.
Entre a fantasia e a realidade sempre escolhi a liberdade.
A liberdade, como escreveu o Knopfli, “é a ressurreição”. E eu, se um dia fosse membro de um qualquer executivo, não me atreveria a dizer que “se um dia sair do Governo, sei o que vou fazer”. Não saberia. Não me vejo capaz de ressuscitar. Eu nunca teria a lata de dizer que em 2011 “a figura do ano são os portugueses”. Não entrei na política para agilizar negócios, desdenhar dela ou gozar com os portugueses. E até hoje, embora desconte ininterruptamente para ter uma reforma decente há 22 anos, nunca consegui entregar as minhas “poupanças” à “gestão discricionária de um banco”. Nem sequer uma parte. Quem me dera poder fazê-lo. É que sem o respaldo de uma irmandade, laranja ou outra, a mim, os “irmãos”, cidadãos como eu, dentro ou fora da política, pedem-me contas.
Quem tem uma carreira fora da política, e da função pública, quando sai não consegue recuperá-la. Em particular se der uma entrevista como a do ministro Relvas e não gozar da ajuda de uma “irmandade”, da compreensão de um partido ou das amizades que a política ajudou a criar e cimentar.
Ninguém, em Portugal, que fez da política a sua vida quando ainda usava “cueiros” inicia uma carreira fora da política, à beira dos 40 anos, sem qualificações nem habilitações, no mundo dos negócios, sem tudo o que a política lhe deu. Ter tirado partido disso, enriquecer com isso e não ter a humildade de reconhecê-lo é profundamente aviltante. E pouco sério.
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