quinta-feira, novembro 24, 2011

DIÁRIO IRREGULAR

24 de Novembro de 2011

A greve é um direito. Para alguns, como o meu falecido avô e distinto anarco-sindicalista do primeiro quartel do século passado, Miguel Maria de Almeida Correia, seria mais um dever. Uma obrigação do operariado quando a degradação das suas condições de vida e de trabalho colocasse em risco princípios básicos de justiça e de liberdade e a sua sobrevivência pessoal e colectiva. Nesta perspectiva, a greve de hoje seria um dever do movimento sindical português do século XXI.

Estamos muito longe das lutas sindicais dos ferroviários portugueses da I República, que foram severamente reprimidas e antecederam a chegada ao poder do movimento que culminou em 28 de Maio de 1926. Mas em causa, então como agora, estavam e estão o desgoverno político e o agravamento das condições de vida dos portugueses. Do que se seguiu a 1926 já nós sabemos. Do que se vai seguir à greve de hoje ninguém sabe. Em qualquer caso, sendo diferentes as condições da democracia naquele final da I República (antes de 28 de Maio já tinham ocorrido golpes e ameaças) das que hoje vivemos, não será difícil pensar que se algo de idêntico acontecesse, já não por força das armas que os tempos são outros, mas por via de uma revolução tecnocrática assente no poder de uma qualquer troika, teríamos uma versão mais moderna, mais cativante e mais bem composta do “Botas”.

O problema é que esse modelo, agora repescado em diversos países, não garante, por esta ordem, uma injecção de confiança nos mercados, uma melhoria da reputação dos governantes, um aumento de credibilidade externa, uma retoma económica que permitisse a reversão dos números do desemprego até um patamar comportável para o Estado e a sociedade e o incremento das exportações, enfim, os instrumentos necessários à ultrapassagem da crise.

Bem pelo contrário. Os exemplos que nos chegam revelam um estado de cegueira global, à semelhança do romance de Saramago, que tendo começado nas grandes instituições financeiras e económicas, alastrou aos mercados, inundou os países e sequestrou a política. Quer isto dizer que neste momento não se afigura provável um qualquer 28 de Maio pela simples razão de que o golpe já aconteceu, está em curso e disseminado por toda a Europa.

Mais grave do que a Fitch ou uma agência chinesa de notação atribuírem a Portugal a classificação de lixo – que muitos milhões de portugueses fazendo fé nas promessas e garantias que lhes foram dadas acreditavam ser impossível de acontecer depois de terem dado a vitória nas presidenciais a Cavaco Silva e de terem elegido Passos Coelho para o lugar do desacreditado e impotente José Sócrates –, é o facto da Alemanha, o farol do Banco Central Europeu e fiel da estabilidade continental, ser incapaz de transmitir aos tais mercados a confiança de que estes necessitariam para arrematarem a totalidade da emissão de dívida que ontem realizou. Ao colocar apenas 60% daquilo que pretendia e a um juro que roça os 2%, os sinos alemães tocaram a rebate. As chamas começam a aproximar-se perigosamente de Berlim e a senhora Merkel se não foi capaz até agora de modernizar o seu guarda-roupa já não terá daqui em diante muitas hipóteses de fazê-lo.

Em parte, o facto das preocupações chegarem à Alemanha poderá parecer-nos, a nós europeus do Sul, uma pequena vingança dos deuses, fartos de nos verem ser tratados pelo acrónimo “pigs” pela “big sister” teutónica e os seus amigos do Norte. Porém, essa aparente satisfação não contribui em nada para resolver o nosso problema, dar mais sentido à greve de hoje, amenizar a amputação dos subsídios de Natal ou os obscenos aumentos de impostos, uns mais às claras outros encapotados, com que o triunvirato Coelho/Gaspar/Relvas nos tem fustigado. De uma forma ou de outra, já que com o Presidente da República, eterno funcionário agarrado às suas reformas e às poupanças que um bando de pantomineiros e criminosos ajudou a fazer crescer, os portugueses sabem que não poderão contar, para além de palavras de circunstância e de boas intenções.

Resta o tal triunvirato. É com ele que teremos de contar, pese embora seja claro que com um primeiro-ministro estagiário, um tecnocrata em comissão de serviço e um especialista em grupos de trabalho doutorado em práticas ocultas e artes várias, ninguém se poderá sentir protegido.

Durante meses a fio os juros subiram. Depois corremos com Sócrates, sem prejuízo de termos ficado com alguns monos plantados em São Bento e no Largo do Rato. Seguiu-se a descoberta dos “buracos” legados pelos anteriores governantes e os que tinham sido devidamente ajardinados pelos sociais-democratas da Madeira. Entretanto, a troika instalou-se, chegaram ordens travestidas de conferências de imprensa, e os peritos em contabilidade pública escolhidos pelo Dr. Coelho apresentaram o OE para 2012. Convencidos de que esse documento era a “Nó Górdio” que nos iria livrar dos terroristas das agências e dos especuladores, os deputados da maioria aprovaram-no sem pestanejar. E sem pensar. Para quem se recorda, a verdadeira “Nó Górdio”, a de Kaúlza de Arriaga, custou-nos os olhos da cara e durou sete meses, deixando no terreno centenas de mortos e milhares de feridos e estropiados.

A operação que está em curso e que levou a que nos fosse atribuída a categoria de lixo (junk) talvez devesse ser apropriadamente chamada “Nó Tróiko”, nome do golpe que o triunvirato Coelho/Gaspar/Relvas, com o apoio do Presidente da República, nos aplicou. Porquê? Porque há coisas de que já temos a certeza neste momento: a “Nó Tróiko” vai ser mais cara do que a original de Kaúlza, vai durar anos em vez de meses e não consegue desalojar os terroristas das suas bases nas agências de rating, permitindo que eles agora nos entrem pela casa. Ficará por apurar o que ainda não conseguimos prever neste momento. Isto é, quantos mortos, feridos e estropiados ficarão pelo caminho. E quando terá lugar um novo 25 de Abril que nos tire este peso de cima e nos devolva a dignidade. Sim, eu sei, não vou tão longe quanto o Luiz Pacheco, não os mando para onde eles mereciam. Mas há uma razão: eu ainda acredito.

Se Ângelo Correia, que é um santo, acreditou em Duarte Lima e depois em Passos Coelho, e a ambos deu a mão, por que razão é que nós, portugueses, que não temos as capacidades dele de prever o futuro, não havemos de dar a mão, ou até as mãos, as duas, ao esforçado Passos Coelho e ao seu primeiro-ministro? Dir-me-ão que Miguel Relvas não tem a preparação de Duarte Lima para poder ser primeiro-ministro. Pois não, não tem. Mas tem amigos. Muitos. Até brasileiros. Eu ainda tenho fé que um deles nos venha safar. Duvido que o outro possa dizer o mesmo.

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