sexta-feira, julho 15, 2011

UMA DISCUSSÃO NECESSÁRIA

"Queremos que este aprofundamento democrático se faça com a introdução de eleições primárias, em que participem militantes, simpatizantes e eleitores, para o efeito registados. Iniciaremos este processo com a escolha dos presidentes de câmaras municipais nas já próximas eleições autárquicas" - Francisco Assis, "A Força das Ideias"

Quem leia a moção de Francisco Assis, para além de lá encontrar o óbvio e a habitual proclamação de boas intenções deste género de textos, também lê a dado passo o trecho acima transcrito. Consciente da designação escolhida para título da moção, quero aqui deixar uma sumária reflexão sobre uma ideia que tem feito correr alguma tinta e gerado trocas de palavras mais exaltadas entre os candidatos à liderança do PS.

E para não misturar os planos, vou esquecer que Francisco Assis foi líder do grupo parlamentar do PS, membro do secretariado de José Sócrates, figura de proa das anteriores legislaturas e seu apoiante no já esquecido XVII Congresso que catapultou o PS para o pior resultado dos últimos 20 anos, garantiu a perda de mais de um milhão de votos e entregou a maioria absoluta de 2005 á maioria CDS/PP que agora, com toda a legitimidade, nos governa. Quero com isto dizer que o facto da proposta ser avançada por um candidato à liderança do PS que não é por mim apoiado, não me inibe de apreciar a sua proposta sem qualquer parti pris. Estou de acordo com Francisco Assis quando ele diz que "a vida dos partidos diz respeito a todos, militantes, simpatizantes, cidadãos" e que é uma "questão de cidadania", mas essa generosa ideia não deverá perder-se em propostas que pela forma como foram apresentadas têm na sua essência tanto de populistas como de mirabolantes.

Tenho para mim que Francisco Assis é um homem sério e inteligente e que ao avançar com a sua proposta de primárias, nos termos tão amplos quanto ela tem vindo a ser por ele desenvolvida nas suas intervenções, dado que a sua moção é nesse ponto, como noutros, particularmente vaga e sucinta, terá pensado nas suas consequências.

É, ademais, curioso, que essa proposta venha de um candidato que ao longo destes anos não avançou, que eu saiba e espero não estar a ser injusto, com nenhuma proposta de alargamento, em concreto, da participação, como forma de obviar ao crescente desinteresse e afastamento da política e dos partidos quer dos militantes quer dos cidadãos. A prática dos últimos anos e a forma como o PS foi dirigido pelos secretariados de José Sócrates cavou um fosso entre os militantes e a sua direcção que Francisco Assis pretende agora remediar com uma abertura praticamente sem limites aos que se predisponham a dizer que são simpatizantes e assinem uma ficha de inscrição.

Nas associações é normal que se diferenciem várias categorias de associados, de fundadores a honorários e a efectivos, de ordinários a extraordinários, independentemente da designação dada. Mas essa não é uma prática consagrada entre os partidos, em especial no PS, que faz da igualdade de direitos e de deveres entre todos um dos seus princípios basilares. Ao querer fazer participar na escolha dos próprios dirigentes e candidatos gente de fora, que querendo eventualmente participar nunca se predispôs a tal, Francisco Assis retira aos militantes, uma vez mais e por sinal os mesmos a quem foi retirada a palavra dentro do partido nos últimos anos, o mais elementar dos direitos que lhes assiste, colocando tal escolha nas mãos de quem, sem que se saiba de onde vem e para onde quer ir, por força de circunstancialismos oportunistas, se considere no direito de escolher e impor aos militantes opções que estes não desejam e sobre as quais deixam de ter qualquer influência. Substituir a imposição de nomes escolhidos pelo secretário-geral por nomes impostos pelos vizinhos, por muito boas pessoas que estes sejam, não parece ser a melhor solução. A não ser que Francisco Assis considere normal que numa família de pai, mãe e cinco filhos, onde até hoje foi sempre o pai quem escolheu por todos os outros e estes sistematicamente se queixam de não serem ouvidos nas decisões que a todos dizem respeito, esse mesmo pai num gesto magnânimo venha agora dizer que a partir do próximo ano as decisões passarão a ser mais participadas, remetendo a escolha do destino de férias da família não para os seus membros, como estes esperariam, mas para umas primárias do condomínio ou do bairro, através das quais os vizinhos dissessem qual o destino mais apropriado para aquela família. Imagine-se o que seria se os vizinhos dissessem que o destino apropriado era a Cochinchina só com bilhete de ida. O exemplo é tão aberrante quanto a proposta que tem vindo ser transmitida por Francisco Assis nas suas intervenções.

E não será o facto da sua proposta não ter qualquer historial na Europa que nos deverá fazer rejeitá-la à partida. A força de uma ideia não está na maior parte das vezes na própria ideia, como Assis bem sabe, nem no modo decidido e mais ou menos enérgico como ela é defendida quando surge a desconfiança dos seus destinatários, sem que para demonstrá-lo seja preciso ir buscar exemplos recentes que o candidato ainda recordará da anterior legislatura. Essa força só residirá na forma como a ideia poderá ser trabalhada e desenvolvida para poder ganhar alguma consistência e sentido útil. Era bom que isto tivesse sido feito antes e não que essa ideia fossse apresentada em termos tão pueris e desgarrados como os que ficaram a constar da sua moção.

Porém, essa infelicidade, que eu atribuo à rapidez com que Assis se predispôs a avançar para a corrida à liderança, que duvido seja o resultado de uma consulta prévia aos simpatizantes e cidadãos não militantes, não me faz rejeitar liminarmente a ideia e acredito que ela merece ser trabalhada. Eu próprio, pensando nos modos de alargamento da participação, em termos mais modestos é certo do que os de Francisco Assis, posto que não tenho no currículo o peso de ter sido presidente de câmara aos vinte e quatro anos, não sou filósofo nem tenho pretensões a sê-lo, admito que esse desiderato terá de ser conseguido fazendo entrar sangue novo nos partidos e na vida pública. A dificuldade está em conseguir articular essa renovação, que todos desejam e tão fundamental se mostra para a melhoria da qualidade da democracia, com a letargia em que caíram os partidos. A começar pelo próprio PS.

Não se esperará que o militante de base empenhado, que mesmo nas mais adversas condições não deixa de aparecer e de pagar quotas, que está sempre desejoso de participar, de ser ouvido e de ter uma palavra na estratégia e nas escolhas, se predisponha a ver entrar pela porta do Largo do Rato uma espécie de claques organizadas, à laia futebolística, com o propósito de dizerem ao secretariado do partido a composição das listas. Voltando a um exemplo extremo, nada impediria então que um qualquer Avelino Ferreira Torres ou um Alberto João Jardim se apresentassem como "candidatos" nessas primárias.

É possível fazer com que todos participem nas escolhas, mediante a apresentação de propostas e de sugestões, sem que todos e mais um entrem pela porta do partido. Nesta medida, e uma vez que não imagino que no PS passe a haver militantes de segunda e de terceira, a acrescer aos de primeira que sempre houve em todos os partidos e que nalguns locais são entredentes designados como "caciques", considero que seria saudável que antes de serem efectuadas as escolhas, por exemplo, para os candidatos às autarquias, se abrisse um período de recolha de opiniões junto das populações, durante o qual seriam apresentados nomes de cidadãos que as pessoas gostassem de ver à frente das suas autarquias. Cada cidadão eleitor que quisesse participar identificar-se-ia, dando o respectivo nome e número de eleitor ou cartão do cidadão, como estão habituados que aconteça em qualquer concurso que dê brindes embora aqui sem outro prémio que não seja o direito à participação, emitiria a sua opinião, exporia as suas razões e indicaria o nome ou os nomes que gostaria de ver a dirigir a sua autarquia ou integrando uma lista. Terminado o período de recolha de opiniões/sugestões, os órgãos do partido estariam em condições de poder escolher três ou quatro nomes que seriam depois levados a sufrágio entre os militantes, saindo dessa escolha os candidatos do partido. Tudo o que for além disso desvaloriza o papel dos militantes e coloca-os em pé de igualdade com respeitáveis simpatizantes e cidadãos que, como hoje sucede com alguns militantes e dirigentes, só apareceriam na hora da formação das listas ou para justificarem aos descontentes as escolhas feitas em Lisboa sem que os destinatários dessas escolhas fossem tidos ou achados.

Um processo do tipo que referi é coisa totalmente diferente das primárias propostas por Francisco Assis. Pelo processo que eu proponho seria possível fazer participar nas escolhas um número alargado de pessoas, eliminando as golpadas oportunistas e deixando na mão dos militantes a última palavra. Dessa forma se legitimaria o procedimento e validariam as escolhas. E todos seriam co-responsáveis pelas decisões que viessem a ser tomadas e pelos resultados, bons ou maus, que viessem a ser obtidos.

Por mim, estou aberto a considerar, trabalhar e apoiar, qualquer que seja o próximo secretário-geral, todas as ideias que tenham alguma consistência e que possam contribuir para uma maior democraticidade interna e aproximação entre os militantes e a direcção do partido e entre estes e os cidadãos eleitores.

É verdade que estou convencido de que isso não será fácil de fazer por parte de quem ainda hoje assume a postura de que o resultado de 5 de Junho, para além da situação internacional, se ficou a dever a uma insuficiente "pedagogia da crise". E está convencido de que a democracia exige uma "defesa radical" a partir de "casa". Confesso que nestas coisas sou mais terra a terra do que Francisco Assis e que depois de tudo o que aconteceu no PS, nos últimos seis anos, com a estratégia e a escolha de candidatos para as mais variadas eleições, já não peço uma "defesa radical da democracia". A mim bastar-me-á que haja uma democracia participada. Simples, honesta, verdadeira. Para radicalismos já me bastaram os últimos três anos (não sou injusto ao ponto de ir aos seis) e o resultado, também ele radical e muito pouco filosófico, das últimas eleições.