terça-feira, novembro 28, 2006

SE ELES TIVESSEM VERGONHA...


A propósito do post anterior, gostaria de chamar a atenção dos meus leitores para o indecoroso anúncio, para não dizer abjecto, que saiu no Expresso de sábado passado (25/11/2006), sob a chancela da Ordem dos Notários.

E indecoroso porquê?

Desde logo, porque sendo encimado pelas fotografias de Hitler, Staline e Churchill, saiu com o título “Se eles tivessem tido um notário, talvez não tivesse havido guerra”! Pois, não, se eles tivessem tido um notário, provavelmente, não teria havido guerra, mas também, provavelmente, já não haveria judeus, nem negros, nem polacos, nem notários à superfície da terra. Não só se teria evitado a guerra, como Hitler teria podido desenvolver impunemente a sua política de extermínio racial. E Hitler teria, seguramente, um tabelião qualquer, à porta de Treblinka ou de Auschwitz, a certificar, conferindo a indispensável fé pública, o número de mortos que eliminava, para que depois as estatísticas não fossem objecto de discussão e não aparecessem uns loucos a dizer que o Holocausto nunca existiu.

E também Staline teria podido eliminar o triplo daqueles que eliminou nos seus gulags. Provavelmente nunca teríamos conhecido Soljenitisine. E provavelmente nunca teria havido União Europeia e ainda hoje estaríamos na idade da pedra da construção europeia.

Mas se fosse só o título, este e o anúncio seriam apenas uma mera infelicidade. Mas não é só isso.

Para além da Ordem dos Notários, não obstante a sua juventude e número reduzido de membros, por comparação com a Ordem dos Advogados ou outras ordens profissionais, se poder dar ao luxo de pagar uma página inteira de publicidade, o que é, aliás, revelador da sua pujança financeira, o texto é todo ele de uma deprimente infelicidade.

Dizem os senhores da Ordem dos Notários que a sua função não é defender os interesses de uma parte, querendo com isto dizer que os malandros dos advogados defendem os interesses de uma parte. Isso é verdade e não podia deixar de sê-lo. Sendo uma evidência histórica, é uma obrigação que também decorre do estatuto do advogado. Se calhar agora a Ordem dos Notários queria advogados imparciais e juízes parciais? Era só o que faltava num Estado de Direito democrático.

Mas há mais. Dizem eles que “o notário não é de ninguém: é de todos”. Aqui fiquei a pensar: querem ver que depois da privatização os nacionalizaram? Dei comigo a telefonar para os meus colegas a perguntar se o dirigente máximo da Ordem dos Notários se chama Vasco Gonçalves? Disseram-me que não. Ainda assim não fiquei convencido. E acabei por perguntar a um notário amigo se ainda estávamos no PREC. Não é que o tipo embatucou e ficou ofendido?!

No anúncio que me foi dado ler, em má hora, verifico que a Ordem dos Notários quer substituir-se aos Estados soberanos, de maneira a que “o estatuto do notário fosse reconhecido e exercido nos negócios políticos internacionais”. Nesta parte comecei a pensar que a megalomania iria dar lugar a mais um disparate. E não me enganei.

Logo a seguir, os senhores da Ordem dos Notários vieram dizer aos leitores do Expresso que “actualmente, quando quiser celebrar um contrato, realizar uma escritura, uma doação, pode escolher um consultor imparcial (…), a fim de evitar qualquer litígio no futuro. Esse consultor é o notário”. Pois claro! Quem não os conheça que os compre. Mas um cidadão que pretende proteger os seus interesses, por exemplo de um banco, não precisa de um consultor imparcial, não precisa de um tipo que não seja carne nem peixe. Precisa sim, quando tem dúvidas, de uma pessoa que saiba o que ele quer e que tenha conhecimentos jurídicos para elucidá-lo e defender os seus interesses.

E evitar os litígios para quê? Para poupar trabalho aos tribunais? Olha quem! Muitos dos que agora se arvoram em arautos dos notários privados e vêm com estas falinhas mansas e absurdas, são exactamente os mesmos que na nossa vida jurídica e comercial, ainda há pouco tempo, quando eram notários públicos, criavam mil e um entraves ao comércio jurídico por causa de uma vírgula mal colocada numa acta ou numa procuração. E quando se pretendia uma informação diziam que não tinham tempo, que tinham muito trabalho, para as pessoas voltarem na semana seguinte ou que, pura e simplesmente, agendavam actos para daí a meia dúzia de meses. Falo por experiência própria, pois não foram poucas as vezes, em que mesmo depois de me identificar como advogado, era mal atendido nos cartórios públicos e quantas vezes preterido no atendimento a favor de um moço de recados de uma agência imobiliária que lá fazia muitas escrituras de muitos milhões. E não foram poucas as vezes em que como advogado protestei contra a arbitrariedade e escrevi, inclusivamente ao Bastonário da Ordem dos Advogados e ao senhor ministro da Justiça, queixando-me do que estava a acontecer com as marcações dos actos notariais, chegando a propor um quadro público de agendamento dos actos, para que não houvesse arbitrariedade nas marcações. Curiosamente, estes senhores, que antes não tinham tempo para nada, nem para receber um advogado, remetendo-os para os seus ajudantes, agora já têm tempo, como notários privados, não só para lavrar os actos notariais, como também para dar consulta jurídica e compor litígios. Há aqui qualquer coisa que me ultrapassa no comportamento desta Ordem dos Notários.

E como se não bastasse de asneiras no arrazoado da Ordem dos Notários, resolveram acrescentar, antes de concluir tão belo anúncio, uma verdadeira peça de antologia, que estando integrados no regime da profissão liberal, “têm os preços da sua intervenção tabelados”. Esta é mais uma lança apontada à advocacia. Mas vejamos a realidade nua e crua dos actos.

O Estatuto da Ordem dos Notários refere que esta é a instituição representativa dos notários portugueses, que é independente dos órgãos do Estado e que tem, entre outras atribuições, “assegurar o desenvolvimento transparente da actividade notarial, com respeito pelos princípios da independência e da imparcialidade”. E diz mais, diz que os notários têm como dever “actuar, no exercício da actividade notarial, de forma a dignificar e prestigiar a imagem e a reputação do notariado português” e que têm “a obrigação de manter equidistância relativamente a interesses particulares susceptíveis de conflituar abstendo-se, designadamente, de assessorar apenas um dos interessados num negócio” – para todas as citações conferir os artigos 1º, 3º, 11º e 33º do referido Estatuto.

Vamos então ao que interessa.

Em primeiro lugar, não vejo em parte alguma do Estatuto da Ordem dos Notários que estes tenham por função a justa composição dos litígios entre particulares.

Depois, também não descortino em que ponto do Estatuto o legislador incumbiu aos notários a função de prestarem consultadoria jurídica. Nem poderia fazê-lo porque o legislador, que não é estúpido de todo, ainda que às vezes possa parecer, foi o mesmo que aprovou os actos próprios da profissão de advogado e o Estatuto da Ordem dos Advogados. Das duas uma: ou os notários querem ser notários ou querem ser advogados. Agora se querem ser as duas coisas estão claramente a violar a lei e o Ministério Público deverá actuar sem contemplações.

Mais, os notários têm a obrigação de denunciar ao Ministério Público os crimes de procuradoria ilícita de que tenham conhecimento no exercício da profissão. Eu pergunto: quantos já fecharam a porta aos mediadores imobiliários, a contabilistas e a simples curiosos, quando se apercebem que estes estão a praticar actos próprios da profissão de advogado? Quantos foram os prevaricadores que os notários já denunciaram ao Ministério Público ou à Ordem dos Advogados, sabendo que os lareiros continuam a andar por aí?

E que raio de profissionais liberais são estes, que antes, quando eram funcionários públicos, nalguns casos, ganhavam um vigésimo do que ganham agora como notários privados, com preços tabelados como eles dizem, e que passam a vida a atacar o ministro da Justiça e o processo da privatização do notariado, apenas por causa do medo de perderem alguma clientela? Quantos deles já abandonaram o notariado privado e regressaram aos seus lugares anteriores? Quantos deles pretendem voltar a ganhar o que ganhavam?

O ataque que a Ordem dos Notários têm vindo a dirigir à honrada advocacia portuguesa é um ataque descabelado, próprio de quem não tem razão e que apenas pretende garantir privilégios de casta. Os mais iníquos. Não em benefício dos cidadãos, mas em benefício próprio. Basta ler o anúncio que temos vindo a referir e o que se vai escrevendo no site dos notários privados para se perceber que algo vai mal no reino da Dinamarca.


E o ataque à advocacia é tão evidente que a Ordem dos Notários se permite discordar da possibilidade de certificação de fotocópias e de reconhecimentos de assinaturas feitos pelos advogados, colocando em causa de forma grave e leviana a honradez, a probidade e a idoneidade da grande maioria dos advogados portugueses, a começar por mim, quando é certo que não atacam os reconhecimentos de assinaturas, pelo menos com a mesma virulência com que atacam a advocacia portuguesa, relativamente aos reconhecimentos feitos pelas câmaras de comércio ou os CTT. Como se aqueles que naquelas e nestes praticam tais actos, ao abrigo da lei, tivessem alguma superioridade moral sobre os advogados.

Se a estes preocupantes factos juntarmos o rumor, que um colega me fez chegar, de que a Ordem dos Notários, ou alguns dos seus membros, numa assembleia geral da classe, realizada em Setembro passado, salientou a necessidade de serem estabelecidos protocolos com bancos e imobiliárias, no sentido de melhorarem a respectiva relação e serem os destinatários dos múltiplos actos que aquelas entidades realizam, juntando, assim, à prática dos actos notariais a consulta jurídica, acto próprio da profissão de advogado, começo a pensar como compatibilizar a apregoada independência do seu estatuto com a dependência económica em que se colocam em relação àqueles parceiros empresariais. Àquilo que pretendem fazer chama-se subserviência, a qual é, para quem não sabe, o maior inimigo de qualquer profissional liberal que se preze.

Posto isto, e sem querer brincar com coisas sérias, no lugar do senhor ministro da Justiça, eu repensaria seriamente o notariado privado em Portugal e o alargamento da desformalização de alguns actos como as escrituras de compra e venda, as quais poderiam passar a ser realizadas por qualquer advogado, desde que tomada as devidas cautelas e precauções. Se os notários querem ser advogados, dando consultas por atacado, então eu também quero ser notário e passar a fazer escrituras por atacado, e não apenas a mera certificação de uma meia dúzia de fotocópias ou de reconhecimentos de assinaturas que esporadicamente faço a favor de alguns clientes e pelos quais, em regra, nem sequer são cobrados honorários. Ou há moralidade ou comem todos, que isto de ser profissional liberal com a mãozinha do Estado tem muito que se lhe diga.

É bom que a Ordem dos Advogados se mexa. E que o faça com mais vigor do que até aqui.

Para se ser profissional liberal não basta publicar um anúncio no Expresso. É preciso actuar como tal, mostrar que se é profissional liberal, que se é merecedor de tal estatuto, e, bem assim, das honras e da dignidade da profissão. É preciso assumir os riscos da profissão liberal. O resto é conversa de medricas, de funcionário público despeitado e a mais confrangedora subserviência ao poder político e económico.

Eu, pela minha parte, e retomando o ponto inicial destas longas linhas, só posso dizer uma coisa: Se o Dr. Vale e Azevedo não tivesse tido um notário às ordens, o Benfica não teria sido lixado da forma que foi. E eu, que envergo a toga com honra e brio há quase duas décadas, não teria tido necessidade de escrever estas linhas. Eu, vejam só, que sendo actualmente advogado também já fui notário e que tendo optado pela advocacia livre e sem peias nunca assinei protocolos com quem me pudesse garantir trabalho no futuro. E olhem que me tenho fartado de penar para não vergar a cerviz. Haja vergonha.

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