quarta-feira, outubro 04, 2006

Notável: Vicente Jorge Silva no DN, 4/10/06

Esta semana não tive tempo para escrever uma linha que fosse. Mas, felizmente, neste país ainda há quem o faça por mim. E muito melhor. Já não preciso de voltar a este tema do PGR. "Le Roi est mort. Vive le Roi!". Bom feriado e que Viva a República!

O cândido que não quis ser Sísifo

Souto Moura deixa por estes dias as funções de procurador-geral da República e escolheu o semanário Sol para fazer as suas confidências de fim de mandato. Os entrevistadores evitaram perguntas incómodas e rodearam o procurador cessante de um comovente desvelo, quais jardineiros carinhosos tratando uma delicada flor de estufa. Vítor Rainho, subdirector do Sol e um dos entrevistadores, é definitivo: "Afinal, quantos procuradores deram seguimento a tantos processos envolvendo figuras públicas? Quantos tiveram a coragem de não ceder em momento algum? Se cometeu erros? É óbvio que sim, mas Souto Moura faz-nos acreditar que em Portugal nada será como dantes. Os poderosos do futebol, da política, do espectáculo ou das finanças sabem que, aos poucos, está a desaparecer o conceito de justiça para ricos e para pobres."Diga-se que o subdirector do Sol não está sozinho nesta avaliação. Outros comentadores têm manifestado idêntica benevolência com a acção do procurador, apenas porque Souto Moura foi supostamente incómodo para os poderes instalados, em especial o poder político. Pouco importa que a credibilidade do Ministério Público tenha sido literalmente arrasada por uma sucessão imparável de casos de incompetência e arbitrariedade judicial ou de condescendência corporativa, nos quais o procurador parecia ser sempre apanhado em falso, como um alienígena acabado de chegar à Terra. Em Portugal, o horror aos "poderosos" serve de caução às derivas da Justiça. E se, no fim, a Justiça não funcionar por culpa própria, deixando os culpados sem castigo e as vítimas sem reparação, logo se encontrará uma sibilina teoria conspirativa para o fracasso. A entrevista ao Sol nada traz de novo sobre as (in)decisões controversas do procurador. Nenhuma revelação, mas muitas justificações - algumas delas embrulhadíssimas, em particular sobre o caso Casa Pia ou o "Envelope 9". Os acidentes incompreensíveis são explicados com uma candura absolutamente desconcertante e quase inverosímil, porventura o traço principal da personalidade de Souto Moura. Daí a confissão: "Se há lição que tiro é que não tive na devida consideração a força que a comunicação social tem."O procurador acredita piamente no que diz, com a doce ingenuidade de um neófito, mesmo quando o que diz parece simplesmente... incrível. Porque é que no "Envelope 9" a culpa foi, afinal, do "mensageiro", dos jornalistas - e não de quem recolheu a mensagem no envelope? Resposta: "Obviamente, porque só em relação a eles o magistrado titular do processo entendeu que havia indícios suficientes. Pelo que tenho ouvido, muito cómodo seria não acusar ninguém." Assim pagou o "mensageiro" os custos da incomodidade da "mensagem".Onde podemos encontrar algumas pistas para perceber a imponderável candura de Souto Moura é nos episódios biográficos evocados na entrevista. Este homem, nascido numa família burguesa do Porto, que tem como hobbies construir modelos de barcos e desenhar folhetos para seminários de Direito, descobriu a religião aos trinta anos (diz-se próximo dos jesuítas) depois de ter lido O Mito de Sísifo de Camus. Por temer ser Sísifo, tornou-se cândido. E foi candidamente que furou a greve académica de Coimbra, em 69, porque ao regressar de um internamento hospitalar a sua "preocupação principal era não chumbar o ano". Reconhece que a greve foi "das coisas mais importantes que se fez contra o regime em Portugal", embora considere que "era tudo menos uma manifestação puramente espontânea", uma "coisa completamente limpa". "Mas se calhar", admite "era ingenuidade minha, pois essas coisas nunca se fazem com rigores desse género."Souto Moura começa como delegado do MP em Ponte da Barca e, enternecidamente, recorda: " Não havia casa de magistrados e fiquei na pensão da Fininha. Era uma coisa adorável, onde me aqueciam a água para o banho - província pura, portanto. Comia-se excepcionalmente, a Fininha adorava a minha presença, porque, para ela, ter o delegado a viver lá era como eu a receber aqui a rainha de Inglaterra." Trinta e tal anos depois, reencontramos a mesma candura pequenina: "Ainda há um mês, em Moscovo, houve uma reunião de procuradores-gerais da Europa, sobre o tema "Direitos Humanos e MP". E vieram pedir-me para falar uns minutos sobre o tema na presença do presidente Putin que estava a chegar. Enfim, nem deu para ficar aflito! Improvisei e lá falei. Ninguém soube disto cá." A candid conversation de Souto Moura ao Sol mostra, enfim, porque é que o procurador da República que esta semana cessa funções se equivocou sobre o "melhor dos mundos possíveis" do Cândido de Voltaire: "A imagem que me colaram foi a de que sou um indivíduo que de vez em quando diz uns disparates num vão de escada". Ele rejeita obviamente a caricatura, mas o auto-retrato é perfeito. (Vicente Jorge Silva, Diário de Notícias, 4/10/2006)

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