D.José Policarpo, o cardeal patriarca de Lisboa, deu uma interessante entrevista ao DN, no passado dia 28 de Outubro.
Entre outras coisas, uma mais interessantes do que outras, diz o cardeal patriarca, referindo-se à lei que regula a interrupção voluntária da gravidez que se trata de uma “lei que cria um direito cívico” e que “o aborto não é uma questão religiosa, é de ética fundamental”.
D.José Policarpo é um homem culto e inteligente, mas por mais do que uma vez já teve que vir explicar-se sobre a sua posição e a da Igreja na questão do aborto. Não pretendo agora polemizar sobre essa questão, antes aproveitar as duas frases que transcrevi para aqui deixar a minha posição, já que essas duas breves transcrições aproximam-se daquele que é o meu entendimento sobre o assunto.
Quero, no entanto, deixar claro que ela não se resume só a isso, e que importa esclarecer as coisas com um mínimo de rigor para que depois não subsistam dúvidas.
Sobre o aborto há, na minha modesta opinião, quatro prismas de análise: religioso, político, ético e científico. Todos eles são importantes na posição que cada um assuma, mas só um é decisivo.
De um ponto de vista religioso a questão não tem qualquer interesse. Portugal é um estado soberano e laico, pelo que por muito valor que se lhe queria atribuir numa perspectiva individual, ela é absolutamente irrelevante de um ponto de vista colectivo, o único que neste momento está em causa atenta a conflitualidade social que o aborto gera e tem gerado de há dezenas de anos a esta parte.
A consideração política do problema traz consigo uma reflexão sobre as opções legislativas e a aceitação do referendo como instrumento de consulta popular necessário para sua resolução.
O plano científico é importante para que se perceba a dicotomia embrião/feto e a razão que leva a que seja de dez o número de semanas em causa e não qualquer outro, superior ou inferior.
Sobra a vertente ética e esta é, a meu ver, a única que goza de verdadeira relevância e aquela que deverá pesar no momento da posição que seja tomada.
Por isso mesmo, sabendo nós que temos neste momento uma lei que já permite em determinadas circunstâncias, que me abstenho aqui de desenvolver por pressupor que todos as conhecem, que permitem o aborto em circunstâncias excepcionais, a primeira pergunta que se impõe fazer é se se justifica a alteração legislativa que se pretende fazer?
Um dado importante que foi revelado há algumas semanas atrás indicava que dos abortos efectuados em Badajoz, na Clínica Los Arcos, pelas cerca de 4500 portuguesas que anualmente a demandam, 62% eram mulheres que não tomavam anticoncepcionais e mais de 50% eram mulheres solteiras. Não sei se foi revelada a idade dessas mulheres. Se tal aconteceu não retive esse dado.
Mas para além disso, também julgo que é de admitir que as mulheres que foram abortar a Badajoz tinham condições económicas para o fazerem e que as mulheres que têm sido acusadas da sua prática voluntária em Portugal, na esmagadora maioria dos casos têm problemas sociais e económicos graves e que se não fora estes também iriam a Badajoz fazer o mesmo que as outras 4.500.
Perante estes dados e tudo aquilo que é conhecido, se é que se pode conhecer alguma vez com justeza o que medra na clandestinidade, sou tentado a concluir que o problema do aborto em Portugal é antes de tudo o mais um problema de educação e de responsabilização individual e colectiva. Quando 62% das mulheres que vão à Clínica de Los Arcos não tomam anticoncepcionais nem utilizam quaisquer métodos minimamente eficazes e cientificamente provados de evitarem gravidezes indesejadas, a única coisa que se pode dizer é que existe uma tremenda falta de responsabilidade individual e colectiva e que, provavelmente, essas gravidezes que se transformam em abortos em Badajoz seriam perfeitamente evitáveis com uma política adequada de educação, dentro da família e na escola, e de responsabilização individual e colectiva. Como se vê pela leitura dos dados da Clínica de Los Arcos e dos objectivos que os seus proprietários pretendem com a abertura de uma sucursal em Lisboa, isto é, fazer um negócio dentro da lei, a questão só assume natureza social num segundo momento e em relação a mulheres provenientes de meios economicamente desfavorecidos. Mas que as diferenças de classe e de poder económico criam uma inaceitável desigualdade entre mulheres que têm, em dado momento das suas vidas, o mesmo drama para resolver, não constitui uma especificidade que justifique a alteração legislativa.
O simples direito que algumas mulheres reclamam de poderem dispor do seu próprio corpo, também não me parece que seja argumento fundamental que justifique a mudança do actual quadro legal. Contudo, admito que para algumas mulheres isso possa ser importante e que em determinados contextos extremos queiram que esse direito se sobreponha ao direito do feto ou à vontade do outro progenitor de ver o mesmo desenvolver-se.
Daí que a opção pelo aborto, ou como é politicamente correcto dizer-se, pela interrupção voluntária da gravidez, se assuma antes de tudo o mais como uma questão do foro da consciência de cada um, como uma questão de ética fundamental.
Só que como questão de ética fundamental e como questão de consciência, a questão não é, ou não devia ser, sequer referendável. Neste ponto, o Governo de Guterres errou, da mesma forma que o Governo de Sócrates vai voltar a errar.
Como questão de consciência, o problema do aborto não tem que ser discutido colectivamente. Quando muito interessa aos dois parceiros que contribuíram para a formação do feto. Em última instância, numa perspectiva redutora, egoísta e feminista, interessa apenas à mulher, já que é esta quem no fim terá de tomar a decisão de levar a gravidez até ao fim ou não.
Daí que considere, racionalmente, ser a questão um assunto de pura política legislativa. Era ao Governo legítimo de Portugal que se impunha analisar a actual lei, auscultar a opinião pública e o sentir social sobre essa matéria e decidir se se impunha ou não a necessidade de uma alteração legislativa que permitisse a interrupção voluntária da gravidez até as dez semanas por vontade exclusiva da mulher. Se uma lei não serve, se não resolve um problema, se não presta, deve ser alterada. Nenhum católico, nenhum opositor ao aborto seria obrigado a aceitá-lo e, muito menos, a praticá-lo. Só que tal decisão também só faria sentido depois de se ter levado a cabo, ao longo de um período razoável, uma política de educação sexual e cívica tendente à responsabilização individual e colectiva.
Este entendimento leva-me então a concluir pela desnecessidade do referendo. O referendo com Guterres foi uma forma de desresponsabilização política, um erro grave que redundou na actual situação. Com Sócrates torna-se numa necessidade decorrente do erro de Guterres e do compromisso eleitoral que foi assumido nas últimas eleições legislativas.
O nível de abstenção verificado no primeiro referendo deveria ter sido suficiente para que os partidos políticos portugueses percebessem o erro que havia sido cometido. É que o referendo só deve ser convocado para decidir questões fundamentais da vida colectiva. A falta de participação não foi apenas o resultado de uma postura cívica de desinteresse. Foi, igualmente, o resultado, e esta é a análise que faço, da consideração por parte do eleitorado da pouca importância colectiva do assunto e da estupidez que constituiu referendar uma questão de consciência.
Agora vamos voltar ao mesmo, havendo já quem, do alto da sua sobranceria, tenha vindo dizer que mesmo que a taxa de participação seja inferior a 50%, o Governo poderá sempre vir a legislar sobre essa matéria. Pois pode, mas convém dizê-lo já se o vai fazer ou não. Porque se pretende vir a fazê-lo independentemente do resultado, então para quê participar no referendo? Este é um ponto importante que deverá ser devidamente esclarecido e ponderado antes do referendo. É que a maior ou menor taxa de participação dos cidadãos no referendo que se avizinha poderá vir a depender do conhecimento antecipado e sem equívocos da posição que o primeiro-ministro e o Governo virão a tomar nas diversas hipóteses que se podem vir a colocar: acatar o resultado em quaisquer circunstâncias e qualquer que seja a taxa de participação, só aceitar o resultado se for vinculativo, e se não for vinculativo se vai acabar por legislar sobre a matéria ou se vai deixar tudo como está e remeter o problema para a próxima legislatura.
Posto isto, resta-me dizer que não faço tenções de fazer campanha nem a favor do sim nem a favor do não, porque considero um disparate esse tipo de iniciativa, posto que normalmente só serve para aumentar a confusão e introduzir elementos de irracionalidade numa discussão que se quer racional e séria. Sou pelo esclarecimento e não pela “campanha”.
Também não decidi ainda se irei participar no referendo ou não. Mas se à última hora decidir vir a fazê-lo, em consciência e como católico irei votar pelo “Não”. Mas isso dependerá, em certa medida, daquilo que o Governo e os partidos venham entretanto a dizer até lá sobre o que pretendem fazer depois se o referendo tiver uma participação inferior a 50% e um resultado idêntico ao da última consulta se repetir.
Entre outras coisas, uma mais interessantes do que outras, diz o cardeal patriarca, referindo-se à lei que regula a interrupção voluntária da gravidez que se trata de uma “lei que cria um direito cívico” e que “o aborto não é uma questão religiosa, é de ética fundamental”.
D.José Policarpo é um homem culto e inteligente, mas por mais do que uma vez já teve que vir explicar-se sobre a sua posição e a da Igreja na questão do aborto. Não pretendo agora polemizar sobre essa questão, antes aproveitar as duas frases que transcrevi para aqui deixar a minha posição, já que essas duas breves transcrições aproximam-se daquele que é o meu entendimento sobre o assunto.
Quero, no entanto, deixar claro que ela não se resume só a isso, e que importa esclarecer as coisas com um mínimo de rigor para que depois não subsistam dúvidas.
Sobre o aborto há, na minha modesta opinião, quatro prismas de análise: religioso, político, ético e científico. Todos eles são importantes na posição que cada um assuma, mas só um é decisivo.
De um ponto de vista religioso a questão não tem qualquer interesse. Portugal é um estado soberano e laico, pelo que por muito valor que se lhe queria atribuir numa perspectiva individual, ela é absolutamente irrelevante de um ponto de vista colectivo, o único que neste momento está em causa atenta a conflitualidade social que o aborto gera e tem gerado de há dezenas de anos a esta parte.
A consideração política do problema traz consigo uma reflexão sobre as opções legislativas e a aceitação do referendo como instrumento de consulta popular necessário para sua resolução.
O plano científico é importante para que se perceba a dicotomia embrião/feto e a razão que leva a que seja de dez o número de semanas em causa e não qualquer outro, superior ou inferior.
Sobra a vertente ética e esta é, a meu ver, a única que goza de verdadeira relevância e aquela que deverá pesar no momento da posição que seja tomada.
Por isso mesmo, sabendo nós que temos neste momento uma lei que já permite em determinadas circunstâncias, que me abstenho aqui de desenvolver por pressupor que todos as conhecem, que permitem o aborto em circunstâncias excepcionais, a primeira pergunta que se impõe fazer é se se justifica a alteração legislativa que se pretende fazer?
Um dado importante que foi revelado há algumas semanas atrás indicava que dos abortos efectuados em Badajoz, na Clínica Los Arcos, pelas cerca de 4500 portuguesas que anualmente a demandam, 62% eram mulheres que não tomavam anticoncepcionais e mais de 50% eram mulheres solteiras. Não sei se foi revelada a idade dessas mulheres. Se tal aconteceu não retive esse dado.
Mas para além disso, também julgo que é de admitir que as mulheres que foram abortar a Badajoz tinham condições económicas para o fazerem e que as mulheres que têm sido acusadas da sua prática voluntária em Portugal, na esmagadora maioria dos casos têm problemas sociais e económicos graves e que se não fora estes também iriam a Badajoz fazer o mesmo que as outras 4.500.
Perante estes dados e tudo aquilo que é conhecido, se é que se pode conhecer alguma vez com justeza o que medra na clandestinidade, sou tentado a concluir que o problema do aborto em Portugal é antes de tudo o mais um problema de educação e de responsabilização individual e colectiva. Quando 62% das mulheres que vão à Clínica de Los Arcos não tomam anticoncepcionais nem utilizam quaisquer métodos minimamente eficazes e cientificamente provados de evitarem gravidezes indesejadas, a única coisa que se pode dizer é que existe uma tremenda falta de responsabilidade individual e colectiva e que, provavelmente, essas gravidezes que se transformam em abortos em Badajoz seriam perfeitamente evitáveis com uma política adequada de educação, dentro da família e na escola, e de responsabilização individual e colectiva. Como se vê pela leitura dos dados da Clínica de Los Arcos e dos objectivos que os seus proprietários pretendem com a abertura de uma sucursal em Lisboa, isto é, fazer um negócio dentro da lei, a questão só assume natureza social num segundo momento e em relação a mulheres provenientes de meios economicamente desfavorecidos. Mas que as diferenças de classe e de poder económico criam uma inaceitável desigualdade entre mulheres que têm, em dado momento das suas vidas, o mesmo drama para resolver, não constitui uma especificidade que justifique a alteração legislativa.
O simples direito que algumas mulheres reclamam de poderem dispor do seu próprio corpo, também não me parece que seja argumento fundamental que justifique a mudança do actual quadro legal. Contudo, admito que para algumas mulheres isso possa ser importante e que em determinados contextos extremos queiram que esse direito se sobreponha ao direito do feto ou à vontade do outro progenitor de ver o mesmo desenvolver-se.
Daí que a opção pelo aborto, ou como é politicamente correcto dizer-se, pela interrupção voluntária da gravidez, se assuma antes de tudo o mais como uma questão do foro da consciência de cada um, como uma questão de ética fundamental.
Só que como questão de ética fundamental e como questão de consciência, a questão não é, ou não devia ser, sequer referendável. Neste ponto, o Governo de Guterres errou, da mesma forma que o Governo de Sócrates vai voltar a errar.
Como questão de consciência, o problema do aborto não tem que ser discutido colectivamente. Quando muito interessa aos dois parceiros que contribuíram para a formação do feto. Em última instância, numa perspectiva redutora, egoísta e feminista, interessa apenas à mulher, já que é esta quem no fim terá de tomar a decisão de levar a gravidez até ao fim ou não.
Daí que considere, racionalmente, ser a questão um assunto de pura política legislativa. Era ao Governo legítimo de Portugal que se impunha analisar a actual lei, auscultar a opinião pública e o sentir social sobre essa matéria e decidir se se impunha ou não a necessidade de uma alteração legislativa que permitisse a interrupção voluntária da gravidez até as dez semanas por vontade exclusiva da mulher. Se uma lei não serve, se não resolve um problema, se não presta, deve ser alterada. Nenhum católico, nenhum opositor ao aborto seria obrigado a aceitá-lo e, muito menos, a praticá-lo. Só que tal decisão também só faria sentido depois de se ter levado a cabo, ao longo de um período razoável, uma política de educação sexual e cívica tendente à responsabilização individual e colectiva.
Este entendimento leva-me então a concluir pela desnecessidade do referendo. O referendo com Guterres foi uma forma de desresponsabilização política, um erro grave que redundou na actual situação. Com Sócrates torna-se numa necessidade decorrente do erro de Guterres e do compromisso eleitoral que foi assumido nas últimas eleições legislativas.
O nível de abstenção verificado no primeiro referendo deveria ter sido suficiente para que os partidos políticos portugueses percebessem o erro que havia sido cometido. É que o referendo só deve ser convocado para decidir questões fundamentais da vida colectiva. A falta de participação não foi apenas o resultado de uma postura cívica de desinteresse. Foi, igualmente, o resultado, e esta é a análise que faço, da consideração por parte do eleitorado da pouca importância colectiva do assunto e da estupidez que constituiu referendar uma questão de consciência.
Agora vamos voltar ao mesmo, havendo já quem, do alto da sua sobranceria, tenha vindo dizer que mesmo que a taxa de participação seja inferior a 50%, o Governo poderá sempre vir a legislar sobre essa matéria. Pois pode, mas convém dizê-lo já se o vai fazer ou não. Porque se pretende vir a fazê-lo independentemente do resultado, então para quê participar no referendo? Este é um ponto importante que deverá ser devidamente esclarecido e ponderado antes do referendo. É que a maior ou menor taxa de participação dos cidadãos no referendo que se avizinha poderá vir a depender do conhecimento antecipado e sem equívocos da posição que o primeiro-ministro e o Governo virão a tomar nas diversas hipóteses que se podem vir a colocar: acatar o resultado em quaisquer circunstâncias e qualquer que seja a taxa de participação, só aceitar o resultado se for vinculativo, e se não for vinculativo se vai acabar por legislar sobre a matéria ou se vai deixar tudo como está e remeter o problema para a próxima legislatura.
Posto isto, resta-me dizer que não faço tenções de fazer campanha nem a favor do sim nem a favor do não, porque considero um disparate esse tipo de iniciativa, posto que normalmente só serve para aumentar a confusão e introduzir elementos de irracionalidade numa discussão que se quer racional e séria. Sou pelo esclarecimento e não pela “campanha”.
Também não decidi ainda se irei participar no referendo ou não. Mas se à última hora decidir vir a fazê-lo, em consciência e como católico irei votar pelo “Não”. Mas isso dependerá, em certa medida, daquilo que o Governo e os partidos venham entretanto a dizer até lá sobre o que pretendem fazer depois se o referendo tiver uma participação inferior a 50% e um resultado idêntico ao da última consulta se repetir.
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