quinta-feira, outubro 26, 2006

AVESTRUZES NA ENGORDA



Um dos autores do Corta-Fitas escreveu uma carta aberta ao camarada Bernardino Soares sobre a Coreia do Norte, país em que aquele jovem deputado, mas já empedernido líder comunista, se tornou especialista. Alguns dos leitores do referido blogue, acharam por bem defender o rapaz, que deve estar neste momento sentado à secretária, tal qual o burocrata da foto, à espera das reacções às reacções.
Eu bem sei que é difícil defender o indefensável e que nem todos são como o José Saramago, que por mais piruetas que dê acaba sempre por ter toda a razão do mundo, mesmo que só ele a reconheça. Este passou a ser, aliás, um dos direitos conferidos, como bem se sabe, não pela defesa que fez das liberdades enquanto director do Diário de Notícias, mas pelo estatuto que o Nobel lhe emprestou.
Só que há ocasiões em que a omissão da palavra se torna num crime. Eu não sei o que leva o camarada Bernardino e os seus demais camaradas, a defenderem tão intransigentemente o regime totalitário de Pyongyang, cujas virtudes se desconhecem.
Por razões que não vêm agora ao caso, cheguei, em dada altura, a ter de contactar pessoalmente com responsáveis coreanos. Pouco depois, quando já nada o faria supor, dou de caras com um dos meus interlocutores, daqueles que usam fato castanho com um crachá com a bandeirinha vemelha, no luxuoso health club de um hotel de que em tempos fui membro, numa dessas mecas do "capitalismo selvagem" e da exploração das classes trabalhadoras. É claro que quando o dito camarada olhou para um espelho, me viu a olhar para ele, e me reconheceu, de imediato se pôs ao fresco. Certamente temendo que eu, qual bufo, fosse mandar um relatório para os seus patrões a relatar o encontro e ele acabasse num qualquer gulag.
Antes desse episódio, quando há mais de uma dúzia de anos estive em Panmunjong, na linha divisória entre as duas Coreias, pouco antes da visita de Soares a esse local mítico da Guerra Fria, fiquei com a imagem de uma bandeira monumental, permanentemente desfraldada do outro lado da fronteira, e do som intenso da propaganda nos megafones. Retive ainda a permanente tensão na zona de fronteira, até mesmo quando almocei na base americana, pese embora o clima aparentemente descontraído e a bonomia dos que me receberam e me guiaram numa visita à zona desmilitarizada. E não pude, também, deixar de fixar uma pequena história que me contaram, ocorrida aquando da assinatura do armísticio, num dos barraccões azuis da linha divisória. Pouco antes da sua assinatura, os dirigentes da Coreia do Norte resolveram substituir a pequena bandeira que tinham em cima da sua mesa, que era de igual dimensão à dos outros países que ali iriam estar, por uma outra um pouco maior. E de cada vez que as bandeiras eram substituídas pelos funcionários da ONU, creio eu, que preparavam o acto, de maneira a que as todas bandeiras fossem iguais nas respectivas dimensões, o representante de Pyongyang substituía a sua por uma maior. Ainda hoje quem entrar na sala onde se assinou o armísticio reparará que a pequena bandeira da Coreia do Norte que lá está é ligeiramente maior do que as outras. Tenho, aliás, uma fotografia desse local, tirada quando por ali passei.
É claro que isto não tem qualquer relevância no contexto do problema e que estas duas pequenas histórias não passam disso mesmo, de uma pequena memória pessoal. Mas quando vejo a defesa que os "camaradas" do PCP e aqueles jovens barbudos com lenços palestinianos ao pescoço fazem do regime de Pyongyang, a maior parte deles sem nunca ter passado a fronteira, nem para ir a Badajoz comprar caramelos, isso não deixa de ser revelador da teimosia, da megalomania, do desconhecimento das realidades e de uma determinada mentalidade que persiste.

E nem valerá a pena recordar aqui que no dia 1 de Maio de 1986, estando eu na República Popular da China, pude aperceber-me de que esse era ali um dia de trabalho como os outros para os desgraçados que a troco de 1 ou 2 yuans por dia construíam uma auto-estrada. Os panos coloridos idênticos aos que se vêem na Festa do Avante também estavam lá a ladear o estaleiro. Ainda hoje desconfio que ninguém explicou àqueles homens, mal alimentados e semi-nus, que no Ocidente, em tal dia, ninguém trabalhava e que as condições e número de horas de trabalho que lhes eram impostas nunca seriam admitidas no Ocidente nem permitidas pela OIT.
Não estranho, por isso mesmo, que haja quem defenda o regime de Pyongyang e o carácter dinástico da sucessão, da mesma forma que ignoram o que se passa à sua volta e ficam enxofrados com a mais ligeira crítica. Só que essa posição implica também a defesa de uma das ferozes ditaduras de que há memória, da fome, da miséria, da clausura de todo um povo e da sua manutenção num estado pré-medieval.
Pedir um entendimento entre o Ocidente e a Coreia do Norte, exigir a manutenção dos equilíbrios geo-estratégicos na península coreana e o diálogo entre as nações no contexto das Nações Unidas, não chega. É que enquanto o camarada Bernardino e os outros que o defenderam no Corta-Fitas vão engordando a ler o Avante e a descer a Avenida da Liberdade aos berros contra "o governo do Sócrates", os seus amigos vão fazendo ensaios nucleares à socapa e milhões morrem de fome e de doença devido à teimosia e à cegueira dos seus dirigentes. Hiroshima e Nagasaki ficam logo do outro lado. Às vezes convém recordá-lo.

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