Partir
traz sempre consigo sentimentos contraditórios. A ebulição do espírito começa
logo no momento em que a hipótese surge. Depois vai aumentando à medida que o
destino avança e vai ganhando forma. Desta vez não foi diferente. Com
o passar dos anos a alma enrijece e deixa de nos embaciar os olhos quando no
bulício do vaivém dos aeroportos
roubamos um último abraço aos que ficam. A dor torna-se parte de nós.
Quem
nunca partiu não sabe o quão fácil e difícil é partir. Mas há alturas em que
isso se torna particularmente doloroso pelos riscos acrescidos que envolve,
pela separação dos mais novos e dos mais velhos, pelo afastamento em relação
àqueles que um dia não nos reconhecerão, pela ansiedade que cria naqueles que
um dia abalarão sem que no instante da partida tenhamos a certeza de que um dia
voltaremos a partilhar ternuras e carinhos, gestos simples de quem nos faz ser
como somos, gestos que nos aconchegam os olhos no poente.
Não
parto despeitado, não parto revoltado. O tempo da paixão e da revolta não são
próprios de um pensamento adulto, de uma racionalidade afectuosa como a que
cultivo junto dos que me rodeiam. Parto
triste. Parto só embora saiba que nunca tantos estiveram comigo nesta hora. Por
deixar para trás um povo que sofre diariamente na pele a mediocridade
petulante, incompetente, provinciana e ignorante dos seus dirigentes.
Parto
porque existe um momento na vida de todos nós em que temos de olhar para o que
está mais distante para nos podermos aperceber melhor dos pormenores do que
está perto. Longe de mim, direi, também perto de vós como nunca tive a
pretensão de estar. E nas semanas que antecederam a minha partida muitos foram
os que saídos do nada me vieram oferecer um sorriso, uma palavra amiga e
compreensiva, os que entenderam a minha decisão melhor do que alguma vez pudera
imaginar. É isto que me aproxima dos meus e me afasta dos apêndices que neles
se penduram para melhor espremerem as tetas exauridas da nação.
Vejo
nos olhos dos que deixo mais do que a tristeza, mais do que a dor e o afecto.
Vejo neles a esperança, a certeza de que um dia a bonança virá, sem ilusões
quanto ao regresso de Sebastião, mas com a segurança de quem já viveu e sabe a
inevitabilidade de que melhores dias virão. Porque de homens bons se fazem os
mundos, porque sem homens bons uma nação não sobrevive, porque sem homens bons
não há democracia que resista.
Não
sei quando terminará o tempo da canalha. Não sei quando é que os partidos
perceberão que homens como Rui Moreira “não podem” ser candidatos independentes
porque tinham a obrigação de sê-lo nos partidos. Do mesmo modo que homens como
Seara, Amorim, ou Menezes “não podem” ser candidatos de partido. São dois
pequenos exemplos tirados do nosso quotidiano recente. São exemplos que tornam
a nossa política pequenina.
Ler
a notícia de um semanário, de sexta-feira passada, que nos dá conta de que uma
presidente de junta de freguesia de uma cidade como Lisboa é capaz de se
recandidatar e encabeçar a lista de um partido cujo número dois foi por si
própria denunciado e é agora acusado de “canalizar
para si receitas das Componentes de Apoio à Família entregues na tesouraria da
Junta (...) a pretexto de efectuar pagamentos de aquisição de materiais e
pagamentos ao pessoal de limpeza”, “acedendo
o arguido, deste modo, às verbas em numerários geradas pelos pais dos alunos”
por se encontrar a “vivenciar um contexto pessoal de dificuldades financeiras”, pelo que
decidiu fazer sua “a quantia em numerário”
de “€ 13.104,35”, segundo reza a
acusação do MP, é apenas mais um exemplo da chafurdice em que o País se
encontra e do estado de pré-putrefacção em que o colocaram.
Penso
que não preciso de dizer mais nada. A ferida já foi suficientemente
escarafunchada nas últimas semanas aos olhos de todos para termos a obrigação
de evitar a gangrena.
Espero
em breve poder concentrar-me no meu trabalho, profissional e académico, com o
empenho que a distância me exige para que frutos possa dar. E um dia, meus caros amigos, minha gente querida
de alma lúcida, ter-me-ão de volta. Não darei aos meus críticos o prazer da
certeza do meu não regresso. Até lá aproveitarei o tempo para ir lendo e
escrever o que ficou por escrever no último ano. Pensarei convosco em voz alta,
mesmo estando longe. Porque as trovas que o vento leva também regressam
renovadas se soubermos acompanhá-las, limar-lhes as arestas e transmiti-las às
novas gerações.
Todos
merecemos um futuro. Todos somos pouco para construí-lo. Todos temos a
obrigação ética e moral de exigir melhor, de colocar a “cabeça no cepo” por uma
alteração e renovação duradoura das circunstâncias. Um homem não é a sua
circunstância, um homem é o seu combate. E em muitos casos dura toda uma vida.
Espero,
por tal razão, que os que ficam não esmoreçam nesse combate e que coloquem em
cada luta o peso do bom senso, a força da lucidez, a riqueza do verbo, a
clareza indelével de um raciocínio lúcido, leal, coerente e sempre presente nos
momentos em que muitos querem que claudique.
Porque
os velhos não podem continuar a morrer de vergonha e desprezo atrás de uma
árvore para que a canalha engorde, para que a pacovice diletante dos acomodados
triunfe. Onde quer que eu esteja estarei convosco nesse combate e não
regatearei esforços para que o sorriso das crianças do meu país não acabe no
final da adolescência transformado no rosto encovado e macilento de um
desempregado.
Os
canalhas nunca entenderão isto. Mas também não é preciso. Basta-me saber que os
portugueses o entendem.
(Londres, Terminal 3 do Aeroporto de Heathrow, em
29/09/2013, dia que antecede o recomeço do combate)