Pouco passava das 18h quando me lembrei de que não tinha pão em casa e disse à minha mulher para passarmos pelo supermercado mais próximo. Quando chegámos ao local onde pretendíamos comprar o pão, a confusão logo à entrada de sacos e carrinhos com géneros alimentícios era tal que a minha mulher perguntou a uma cara sua conhecida se aquela gente toda se preparava para fazer algum piquenique. Quando logo a seguir a PSP nos barrou a entrada percebemos o que se passava e a razão para tão grande alarido.
Hoje, Primeiro de Maio, dia em que em todo o mundo civilizado se celebra a luta de um punhado de trabalhadores norte-americanos pela melhoria das suas condições de trabalho, e que entrou na história contemporânea como o Dia do Trabalhador, a cadeia de supermercados Pingo Doce, a mesma que é pertença de um senhor que transferiu a holding da família para a Holanda numa altura de crise nacional, resolveu abrir as portas, aliás na sequência de uma decisão de um executivo liderado por José Sócrates.
E abriu as portas para quê? Para vender todos os seus produtos com 50% de desconto desde que as compras realizadas fossem de valor superior a € 100,00.
Em início de mês, num país em que a taxa de desemprego já passou os 15%, e que caminha a saltos de coelho para os 20%, em que milhares de empresas e famílias são declaradas insolventes todos os meses, os Supermercados Pingo Doce entenderam, aparentemente, conceder uma benesse ao bom povo trabalhador.
Mas não a todo. Só aos que estiveram dispostos a perder o feriado e se sujeitaram a passar meia dúzia de horas nos seus estabelecimentos, lutando para encherem os carrinhos, contribuindo para um espectáculo que teve tanto de imoral como de revelador de uma ética comercial e empresarial a todos os títulos reprovável.
O mesmo patrão do grupo que há meses censurava a um primeiro-ministro a sua falta de ética política não se importou de mandar abrir os seus supermercados no Primeiro de Maio. Ao tomar tal decisão gerou um espectáculo deplorável, verdadeiro gozo com a pobreza e as dificuldades dos portugueses que têm dificuldade em gerir o orçamento até ao final do mês para comprarem bens essenciais, muitos dos quais foram aumentados pelo actual Governo, apoiado pelos donos dos Supermercados Pingo Doce, por via da alteração da taxa do IVA de 6% para 23%.
Para além do espectáculo gerado num feriado nacional, obrigando os seus trabalhadores a um esforço adicional para conseguirem conter a turba, com gente a passar horas nas filas enquanto outros se esgadanhavam para entrarem nas lojas e alcançarem um qualquer produto antes dele se esgotar, açambarcando o indispensável e o supérfluo, com o dinheiro que tinham e com o que não tinham, a atitude dos Supermercados Pingo Doce permite-nos tirar uma de duas conclusões: ou o Pingo Doce praticou preços abaixo do seu custo, praticando uma política de dumping, ou então essa cadeia de supermercados tem margens de lucro superiores a 100%*, que lhe permite vender produtos com 50% de desconto em relação ao preço de aquisição aos seus fornecedores, sendo que, neste caso, a cadeia de supermercados se comporta como um vulgar agiota perante aqueles que contribuem para o seu engrandecimento, tal e qual como uma qualquer financeira de crédito fácil esmifra um devedor insolvente.
Em qualquer caso, o que o Pingo Doce fez foi vergonhoso. Porque se a preocupação do Grupo Jerónimo Martins é facilitar a vida aos portugueses, permitir-lhes que comprem produtos mais baratos sem violar a lei e sem dar cabo da concorrência, praticando uma política socialmente responsável, então os Supermercados Pingo Doce que o façam todos os dias da semana, durante todo o mês, contribuindo para uma descida geral dos preços e poupando-nos a tão triste quanto deprimente espectáculo.
Eu, que já não gostava de bancos e de seguradoras, entidades que nunca estão quando são precisos e se dedicam a tirar o maior partido dos desgraçados que precisam de comprar uma casa para viver ou a inventar exclusões para não honrarem os compromissos que assumem, ao mesmo tempo que pagam dividendos chorudos a ex-governantes e emprestam dinheiro a especuladores para nos enterrarem a todos, acrescentei a partir de hoje mais um conjunto de estabelecimentos a essa lista: os Supermercados Pingo Doce e o Grupo Jerónimo Martins.
Que o capital não tem pátria, como tão bem nos demonstrou Alexandre Soares dos Santos há bem pouco tempo, já todos sabíamos. A partir de hoje também temos a certeza de que não tem ética, moral, vergonha ou respeito perante a pobreza e as dificuldades dos portugueses.
* - Alertou o Paulo Godinho e com toda a razão, depois de eu ter escrito 50%: "(...) para fazerem o que fizeram hoje, a margem de lucro teria de ser de, pelo menos, 100% e não de 50%. A margem de lucro é calculada a partir do preço base do produto, enquanto o desconto é calculado a partir do preço final. Só se pode ter capacidade para vender produtos por metade do preço (50% de desconto) se se tiver os produtos à venda pelo dobro dos preços pelos quais foram comprados (margem de lucro de 100%). Para ter um produto à venda por 10 e poder vendê-lo por 5 (50% de desconto), só se o tiver comprado a 5 ou a menos de 5, pelo que, se o está a vender a 10, está a ter uma margem de lucro de, pelo menos, 100%. Isto sem considerar quaisquer outros custos para além do preço pelo qual os produtos foram comprados".
* - Alertou o Paulo Godinho e com toda a razão, depois de eu ter escrito 50%: "(...) para fazerem o que fizeram hoje, a margem de lucro teria de ser de, pelo menos, 100% e não de 50%. A margem de lucro é calculada a partir do preço base do produto, enquanto o desconto é calculado a partir do preço final. Só se pode ter capacidade para vender produtos por metade do preço (50% de desconto) se se tiver os produtos à venda pelo dobro dos preços pelos quais foram comprados (margem de lucro de 100%). Para ter um produto à venda por 10 e poder vendê-lo por 5 (50% de desconto), só se o tiver comprado a 5 ou a menos de 5, pelo que, se o está a vender a 10, está a ter uma margem de lucro de, pelo menos, 100%. Isto sem considerar quaisquer outros custos para além do preço pelo qual os produtos foram comprados".
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