domingo, janeiro 22, 2012

Uma desgraça nunca vem só

Há momentos em que valeria a pena ser cego, surdo e mudo. Na segurança da sua casa um cidadão pode imaginar o que seria esse luxo mantendo todas as suas capacidades. Um Presidente da República não.

Na sexta-feira passada, o País foi abalado por uma declaração de Aníbal Cavaco Silva. Não foi o cidadão quem falou, foi o Presidente da República. O PR aproveitou um encontro com jornalistas, no meio de uma das muitas visitas que faz, para se queixar do valor da sua reforma. É natural que quem não está satisfeito se queixe, que proteste, que vá para as ruas de megafone. E tire partido daqueles que lhe põem à frente. Já não é normal que um Presidente da República em exercício o faça como se fosse um cidadão qualquer, um contestatário anónimo.

Mas, afinal, o que disse o PR? Queixou-se, qual Calimero, do valor da “sua reforma”. A “sua reforma” que, afinal, são três: uma da Caixa Nacional de Pensões, outra do Banco de Portugal e, ainda, uma subvenção vitalícia pelo tempo em que exerceu cargos políticos. Quem em casa o ouviu ficou a pensar que o PR não recebe o salário inerente à função que desempenha, mas apenas uma reforma da Caixa Nacional de Pensões de € 1300,00 (mil e trezentos euros). Só que a dado passo, certamente traído pelo número de microfones, Aníbal Cavaco Silva disse que “tudo somado, o que irei receber do fundo de pensões do Banco de Portugal e da CGA quase de certeza que não dá para pagar as minhas despesas”.   

Eu não sei quais serão as despesas do Presidente da República. Também não sei quais serão as despesas do reformado Aníbal Cavaco Silva. Mas todos os portugueses sabem que, fiando-se no que diz, não será homem de vícios. Não bebe, não fuma, não se droga, não consta que frequente lupanares. E qualquer cidadão perceberá facilmente que, enquanto PR, o cidadão Aníbal não paga renda de casa, água, luz, gás, a maior parte das refeições, gasolina, estacionamento ou empregada doméstica. E no dia em que o cidadão Aníbal deixar de ser PR passará a auferir de uma pensão que, “tudo somado”, andará, não pelos € 1.300 que ele insinuou, mas pelos € 9.000,00 (nove mil euros).

Custa perceber o que pode levar o PR, o cidadão Aníbal Cavaco Silva – o mesmo que trepava coqueiros em São Tomé como se fosse um símio, que ajudou a promover gente como Oliveira e Costa, Duarte Lima ou Dias Loureiro, e que mantém como assessor um fulano que depois de andar metido num obsceno caso envolvendo um jornalista do Público acabou há dias a explicar num jornal brasileiro que a sua concepção da democracia, em matéria de liberdade de imprensa, não será muito diferente da de um general birmanês –, a fazer afirmações do jaez da que produziu.

Também não sei se o PR tem a exacta noção do que disse. Sei, todavia, que omitiu aos portugueses uma parte substancial dos seus rendimentos. Induziu-os em erro. Porque quem fala como ele falou sabia do que estava a falar. E se formos a analisar os casos em que este PR andou metido, verificaremos que, para além dos episódios relativamente recentes das escutas e da protecção ao seu assessor Fernando Lima, omitiu aos portugueses, numa outra declaração pública, os seus ganhos em Bolsa por via do BPN e das ligações a Oliveira e Costa ou os dados relevantes sobre a forma como adquiriu uma casa na Urbanização da Coelha. Bastará recordar a forma como fez de conta, enquanto pôde, dos problemas em que Dias Loureiro estava envolvido, disfarçando ser este um homem da sua máxima confiança, para acabar desvirtuando o sentido da sua vitória eleitoral com um discurso que destilou acinte. Era pouco. Por isso, esta semana veio queixar-se dos trocos que tem no bolso. Ou melhor, da sua falta.

Já todos tínhamos desconfiado da sua posição quanto ao corte dos subsídios imposto por um governo da sua cor e confiança. E foi patente a sua falta de nível quando referiu, em plena campanha eleitoral, o valor da reforma da sua mulher. Como se esta fosse uma desgraçadinha enjeitada acolhida por ele. Agora, Cavaco Silva, o PR, desceu a um nível nunca visto. Fê-lo sem decoro. Pior, sem a noção do ridículo.

Não se espera de um PR que faça discursos miserabilistas. Que assuma o papel do desgraçadinho ou que omita deliberadamente factos públicos e notórios relacionados com a sua pessoa só para se proteger. Menos ainda que assuma o papel de um merceeiro avarento para se queixar do valor das reformas que recebe.

Para quem descontou durante os mesmos trinta ou quarenta anos que o PR e recebe uma pensão de 500, 600 ou 1000 euros por mês, será fácil perceber que com valores dessa ordem de grandeza seja difícil pagar as todas as despesas do mês. Para qualquer cidadão será muito mais complicado compreender como é possível receber cerca de € 9.000,00 por mês, não gastar um cêntimo com o exercício ou por causa das suas funções, e no final encontrar justificação para ainda assim se queixar.

O cidadão Aníbal Cavaco Silva não merece ser Presidente da República. Não tem atitudes dignas da função que desempenha. É o meu juízo objectivo. O cidadão em causa, pela forma como exerce as suas competências, pelas declarações miserabilistas que profere, revela não ter, nunca ter tido, estatura para desempenhar o cargo. A vitimização não faz parte da nossa herança histórica. Quem diz o que o PR disse esta semana, da forma como o disse, sem gaguejar, desvirtuando os factos para ganhar a compaixão dos seus concidadãos, ofendendo de forma gratuita e insultuosa a maioria dos portugueses que nem em sonhos terão uma reforma como a dele, demonstra não ser digno da História de Portugal. Os cidadãos que diariamente fazem fila na Segurança Social e no Centro de Emprego de Faro para tentarem obter os meios que lhes permitam pagar a água, a luz ou a escola dos filhos, não percebem o que disse o cidadão Aníbal Cavaco Silva. Nunca perceberão. Ninguém no seu perfeito juízo, à direita ou à esquerda, lavrador ou administrador de empresa, alcança as declarações do PR.

Limito-me a confirmar o que sempre pensei dele. Do cidadão e do político. O que foi dito não constituiu um lapso. É um traço do seu carácter. O seu discurso, mesmo que não pudesse ser visto à luz do seu passado político, é mais do que um simples complexo. Ou uma confissão. É a prova do fracasso da educação na formação do carácter. Os conhecimentos, a mobilidade e a ascensão social que a formação académica lhe proporcionou, foram incapazes de lhe moldar ou alterar o carácter. O seu discurso denota a existência de falhas graves na formação da sua personalidade, com reflexo cada vez mais evidente no desempenho das suas funções políticas. No discurso de Estado. É triste, pois é. Mas como escreveu o insuspeito António Ribeiro Ferreira, “as crises servem para muitas coisas, até para descobrir as pessoas, o seu carácter e a forma como estão na vida. A natureza humana revela-se sempre nestas alturas, no pior e no melhor”. Lamentavelmente, esta crise tem revelado, além de um Presidente da República incapaz de corresponder às exigências do momento, o pior do cidadão Aníbal Cavaco Silva.

Sinto-me envergonhado. Estou triste. E revoltado. Ser um mau Presidente da República é um azar. Pode acontecer a qualquer um que exerça as funções. Na pior das hipóteses dura dois mandatos. É um custo da democracia para o qual todos estão preparados. Já um cidadão com uma personalidade mal formada é para sempre. É um vírus que afecta toda a nação. Um cidadão perdido. Uma alma penada. Nunca se está preparado para uma tragédia.

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