terça-feira, novembro 22, 2011

DIÁRIO IRREGULAR

22 de Novembro de 2011

Ver é uma das coisas mais baratas da vida. Também uma das que dá mais prazer, mas uma tarefa das mais difíceis para quem não sabe fazê-lo. É mais fácil, mais simples, infinitamente mais cómodo e relaxante simplesmente olhar. Olhar o dia e a noite. Olhar o caminho que se nos depara, olhar a paisagem, olhar a árvore e a floresta. Gosto de olhar. Penso que todos gostamos. Mas não é a mesma coisa que ver. 

Os olhos e o olhar têm sido motivo para muitos e belos textos. Houve mesmo quem poeticamente escrevesse que se poderia perder o olhar e a luz, não a cor e o brilho de alguns olhos. O poeta não o disse, mas para se perder o olhar e não se perder os olhos é preciso ver. Paradoxalmente, dois dos homens que melhor me ensinaram a ver cegaram, o que me remete para um belo texto do poeta e teólogo José Tolentino de Mendonça que a dado passo escreve só isto:

"os teus olhos são o que resta
dos livros sagrados
e da grande pintura perdida" (in De profundis).

Mesmo quando não podem olhar, medir as distâncias ou perspectivar, esses olhos continuam a ver. Vêem na distância. Quando são capazes, sempre que se esforçam. Por isso, um dos homens a quem acima me referi costumava dizer do fundo da sua atroz cegueira, revoltado, que "eles têm olhos mas não vêem". Ele perdeu os olhos, não a capacidade de ver.

Infelizmente vivemos e estamos rodeados de homens e mulheres que não vêem. De gente que há muito perdeu a capacidade de ver e que se limita preguiçosamente a olhar, a seguir os outros com o olhar, a deixar seguir o olhar atrás dos outros. Perigosamente. Ver é uma outra forma de pensar. Pensar dá trabalho, quase tanto como ver. Daí que poucos queiram esforçar-se a ver.

Ver pode ser demasiado incómodo. Porque quando se vê passa-se muitas vezes por cima do olhar. É preciso ignorá-lo. Porque o olhar turva, o olhar modifica as cores, ilude. Para ver é preciso contornar, afastar cortinas, levantar estores, destravar portadas, abrir os olhos e depois de olhar fechá-los lentamente, retendo nesse movimento tudo o que não se pode perder, tudo o que nos irá ajudar a ver. Depois, calmamente, é preciso arrumar o que se vê, situá-lo no tempo e no espaço, memorizá-lo, até que de novo, muito lentamente, as pálpebras comecem a mover-se e os olhos recuperem a claridade. Nesse percurso, silencioso, individual, profundamente solitário, confrontamo-nos connosco. Encontramos os nossos medos e ilusões, por vezes os sonhos de que fugimos. Acima de tudo vislumbramos o contorno perfeito da vida, vemos passar a nossa própria existência, o correr dos anos, o sentido do gesto, a textura da palavra.

Ver é o burilar incessante do que os nossos olhos alcançam. Ver é uma outra forma de buscar a perfeição. A imortalidade.

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