segunda-feira, outubro 03, 2011

UMA REFORMA NECESSÁRIA QUE COMEÇA MAL

Coincidindo com a apresentação do Documento Verde da Reforma da Administração Local, tive oportunidade de acompanhar na passada sexta-feira um debate promovido pela CIVIS - Associação para o Aprofundamento da Cidadania sobre "O papel das freguesias no século XXI".  Presumo que com a apresentação do documento produzido pelo gabinete do Ministro Adjunto e dos Assuntos Parlamentares este tipo de iniciativas se multiplicará por todo o País, uma vez que as soluções que serão encontradas terão consequências na vida das populações e no desenho do nosso futuro mapa autárquico. Por este motivo, importa alinhavar  algumas ideias sobre o assunto.

1 - Da leitura do Documento Verde percebe-se, em resumo, que se pretende consagrar "uma descentralização" e "racionalização das estruturas, apostando num modelo mais justo de fincanciamento, com maior proximidade, interacção, participação e eficiência", melhorando a prestação do serviço público, "aumentando a eficiência, pela redução de custos".

2 - Quanto à forma como esses objectivos serão atingidos, o documento esclarece que os diversos eixos de actuação têm um "tronco estrutural único que tem como objectivo a sustentabilidade financeira, a regulação do perímetro de actuação das autarquias e a mudança de paradigma da gestão autárquica".

3 - Os objectivos são, pois, ambiciosos - no que não há nisso nenhum mal, bem pelo contrário -, mas o documento é assaz palavroso e confuso, no que parece ser uma característica típica do ministro que o apresentou.

4 - Se desde há muito se afigurava como necessária uma reforma do mapa autárquico, logo verificamos que a reforma que agora se propõe pretende avançar mais rápida do que a própria sombra. As razões são conhecidas e no essencial reconduzem-se às exigências da troika e à mais do que evidente urgência de se fazer mais com menos dinheiro através de uma racionalização das estruturas e da introdução de ganhos de eficiência.

5 - Compreendendo os objectivos visados, confesso que não percebo como será possível mudar o "paradigma da gestão autárquica" centrando a reforma nas freguesias e deixando cada munícipio entregue à sua vontade. Uma "mudança de paradigma" - a expressão é horrorosa - implicaria não apenas uma mudança de mapa, mas igualmente a introdução de novos conceitos. Ora, o que se verifica é que se pretende fazer uma reforma continuando-se a raciocinar balizados pelos modelos herdados do liberalismo, esquecendo-se que as freguesias tal como as conhecemos hoje enquanto parte de um sistema de administração do Estado moderno são produto de uma época, estão datadas, e correspondem a uma concepção de vida e organização local que tendo tido origem na existência de núcleos populacionais agrupados em torno do campanário de uma igreja, em especial nas zonas rurais, só viria a consolidar-se com o Código Administrativo de Rodrigues Sampaio, em 1878. 

6 - Por outro lado, centra-se a reforma nas freguesias, ignorando-se que a nível europeu, e isso foi sublinhado por Freitas do Amaral, praticamente só nas zonas rurais de Inglaterra existem freguesias enquanto autarquias locais, sendo que em França o nível autárquico mais baixo é o do município. 

7 - Entendo, por isso mesmo, que, por uma vez, devíamos ser capazes de pensar uma reforma global, que encarasse a possibilidade de criação de novas estruturas e novas formas de organização do poder local, eventualmente pela criação de uma estrutura intermédia, mais adequada às necessidades do todo nacional, que permitindo os tais ganhos de eficiência mantivesse altos níveis de proximidade com as populações e não implicasse uma maior centralização, e por essa via menor democraticidade da decisão. Só por essa via seria possível diminuir o número de membros das assembleias municipais e de freguesia, "eliminando" muitos presidentes, quer de municípios quer de freguesias, e gerando verdadeiras sinergias. Só que para isso poder ser feito também seria necessário um outro espírito, uma outra abertura para analisar os problemas e encontrar soluções. 

8 - Sabe-se, igualmente, que reformas feitas sob pressão, seja por exigência interna ou imposição externa, como parece ser agora o caso, são normalmente reformas mal feitas, porque precipitadas e decididas sem um tempo de maturação suficiente, destinadas a cumprir calendários e a "mostrarem serviço" independentemente do maior ou menor acerto das escolhas. Tivemos décadas para reformar a administração local e nem mesmo um debate consequente se produziu. Penso que todos os momentos são bons para se fazerem as reformas de que o País carece mas bastará olhar para as últimas reformas que se quis fazer e para os resultados alcançados para se compreender que há uma grande diferença entre o que se fez na Segurança Social, por um lado, e o que se conseguiu em matéria de Justiça. Neste último caso, de há mais de uma década para cá, e com excepção do Direito Administrativo, não houve uma única reforma - Processo Civil, Fiscal, Urbanismo, Arrendamento, Direito Penal, Processo Penal, Sociedades, só para dar alguns exemplos mais frescos - que contribuisse para uma efectiva aproximação dos cidadãos ao Estado, que representassse uma efectiva melhoria do serviço prestado, que fosse sinal de uma maior estabilidade do tecido legislativo e em que os ganhos de eficiência e de imagem do sistema fossem indiscutíveis. Seria uma lástima fazer agora uma "reforma", cujo principal motivo é apenas de natureza económico-financeira, para dentro de meia dúzia de anos se chegar à conclusão de que as coisas foram precipitadas e que a reforma foi martelada para se conformar aos calendários da troika

9 - Havendo vários caminhos para se concretizar um objectivo - apesar do Governo ser nisto concordante mas não conseguir fazê-lo quando se trata de reduzir o défice público cortando a despesa da Administração Central - não se compreende que o único "avanço" passe pela fusão/aglutinação de freguesias deixando os municípios de fora.  Não se vê qual o paradigma que muda quando a extinção de municípios fica ao critério de cada um e todos sabem que não deve haver um único dos 308 municípios que esteja disposto a desaparecer ou a fundir-se com o vizinho. Todos eles encontrarão razões mais do que suficientes para continuarem como estão, a começar por todos aqueles de criação mais recente e que não estarão dispostos a ser consumidos nesta reforma.

10 - Pelo que a Faro diz respeito, uma das coisas que foi interessante saber reside no facto dos eleitos das assembleias de freguesias receberem por sessão cerca de 18 euros e os das assembleias municipais cerca de 70 euros. Seria bom, tendo presentes estes números, que todos conhecessemos os números que poderão resultar da reforma que o Documento Verde do ministro Miguel Relvas antecipa, quer em termos de poupança, quer em termos de aumento de encargos para os municípios/freguesias e para os fregueses/munícipes para se poder ter a noção exacta daquilo que se pretende ganhar ou que se poderá vir a perder no contexto dos muitos milhões que como contribuintes já todos suportamos e que, previsivelmente, ainda iremos suportar a mais logo que seja conhecido o próximo Orçamento de Estado para 2012.

11 - Se quanto às exigências relativamente às empresas municipais e parcerias em que as câmaras se envolveram parece haver concordância, tantos têm sido os desmandos conhecidos, seria também importante que as soluções agora avançadas levassem em linha de conta a articulação futura com as necessidades da regionalização - se é que esta ainda é um objectivo dos partidos políticos e não uma mera bandeira destinada a ser agitada de acordo com os calendários eleitorais e as conveniências do momento - e se desse já a conhecer o sentido das alterações constitucionais que se têm em vista para a concretização da reforma proposta.

12 - Qualquer reforma que se pretenda fazer tendo por critério fundamental  razões economicistas, esquecendo a razão da existência de comunidades locais, as suas necessidades e a melhor forma de corresponder a essas necessidades de acordo com padrões de rigor e transparência - por comparação com os municípios os casos de corrupção conhecidos, em razão da proximidade das freguesias, são muito menores do que naqueles - , e limitando a participação à análise sob pressão de um conjunto de desenhos feitos a régua e esquadro, será sempre uma reforma pífia. Sei que os tempos são outros, mas não queiramos reeeditar, em matéria autárquica e em pleno século XXI, o péssimo exemplo da Conferência de Berlim: os grandes ficaram satisfeitos, os pequenos tramaram-se e as populações ainda hoje pagam o preço de não se ter respeitado a lição da história. Não só não estamos no século XIX como Miguel Relvas ainda não se chama Bismarck.

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