quarta-feira, outubro 19, 2011

DIÁRIO IRREGULAR

19 de Outubro

Mais do que as exigências de uma qualquer troika, o quotidiano esmaga-nos quando nos sentimos impotentes para mudar. Quando todo o esforço e energia se perdem nos meandros que muitas vezes nós próprios criamos.

Olhar para Portugal foi, em tempos, uma actividade serena e eminentemente contemplativa. Nos dias da ira que vivemos, constitui um drama em que revemos toda a nossa lassidão de décadas. Só chegámos aqui porque fomos capazes de nos desprezarmos e aceitámos que outros nos mutilassem a auto-estima. Admitimos trocá-la por um pouco de conforto efémero, pela ilusão da esperança e o convencimento da grandiosidade de um fado que há muito deixámos de merecer.

Não há a quem não custe ouvir o que principais actores desta tragédia dizem. Alguns, com o pudor suficiente para se manterem calados, devem pensar na ingratidão dos homens. Outros, mais atrevidos, compõem as contas do rosário que nos querem impor sob pena de excomunhão por parte dos senhores da troika. A apresentação do Orçamento de Estado para 2011 começou por ser anunciada como uma bênção. Depois tornou-se num castigo passageiro. Agora ameaça ser uma pena sumariamente imposta sem julgamento, defesa ou contraditório, uma canga à maneira china que a todos vergará.

Ninguém de bom senso e minimamente inteligente poderá continuar a escutar as intervenções dos ministros das Finanças e da Economia sem se interrogar se não estará na presença de zombies um saídos de uma fábrica de produção de tecnocratas em série. Gente que vivendo longe do mundo e sem um verdadeiro conhecimento não vestibular da vida, sob a capa de uma aparente humildade, são afinal a dramática reencarnação do Dr. Jekyll e de Mr. Hyde, em que ao discurso seminarista do primeiro se sucede a visão delirante e tenebrosa do segundo; em que ao apregoado e necessário esforço de ultrapassagem da crise em que todos estão empenhados se sucede a pulsão sarcástica e grotesca de um suicídio que pondo a nu todas as suas debilidades nunca chegará a sê-lo porque nem os meios para tal chegarão a tempo, ficando para ali a esvair-se, semi-morto, sujeito à dó e à piedade de terceiros.

Num notável texto publicado há alguns dias no Público, o historiador Rui Tavares definiu o momento que atravessamos como o de um novo PREC, mas agora a sigla identifica uma outra forma de loucura: processo de ruína em curso. Não andará longe da verdade.

Não tenho ilusões – nunca tive – nem sobre os erros do caminho que nos conduziu aqui nem sobre a forma desvairada, atroz e até certo ponto de má fé, como se procurou atalhar a males maiores. Não colocando em causa a necessidade do esforço colectivo, no qual também me revejo, pergunto se não é legítimo questionar a boa fé de uns quantos, se não será curial saber se os actores da tragédia terão consciência do papel que no final lhes está reservado.

No meio disto tudo, parece que o Presidente da República, depois de ter assistido serenamente à forma como nos últimos três meses se foram talhando as tábuas do nosso caixão, finalmente deu sinal de si. O homem, como todos sabem, pode ter os seus complexos, mas tem família e olha à sua volta, coisa que nem Vítor Gaspar nem Álvaro Santos Pereira conseguem fazem. Ou, se o fazem, o que duvido, não percebem ou não querem ver, hipótese para a qual me inclino atenta a unidimensionalidade de que o seu pensamento dá mostras.

O CDS percebeu-o e por isso o seu papel começa a ser ingrato. E vexatório. Paulo Portas, algures num avião, por formação e carácter, poderá estar convencido de que a nossa História nos obrigará a respirar. Esta é uma crença que a troika não possui. Eu também. E até o Presidente da República começa a duvidar. Percebe-se, em especial se levarmos em linha de conta que Francisco van Zeller se apresentou já como porta-voz de todos aqueles que querem aproveitar o tiro que o Governo de Passos Coelho disparou contra os reformados e funcionários públicos para cortarem generalizadamente regalias e subsídios no sector privado. O senhor só não justificou que razão pode ter tal raciocínio em relação a empresas saudáveis e pujantes, porque também as há e sempre haverá, onde a produção e os lucros continuam a ser elevados e em que tal medida só serviria para aumentar a contracção e empobrecer ainda mais os portugueses. Que há muitos patrões avaros a quererem aproveitar a boleia dos cortes não me impressiona. Impressiona-me sim o desplante com que há quem o proponha.

É natural que quando se antevê a morte do paciente pela terapia surjam algumas vozes apelando ao chumbo do orçamento por parte do PS. Tal posição poderia beneficiar da minha simpatia se o PS do Novo Ciclo já tivesse sido capaz de se livrar dos fantasmas do passado, de limpar os armários, de assumir com verticalidade os erros do passado. De enterrar condignamente os esqueletos que recebeu. Para utilizar uma linguagem actual, o PS não pode ficar refém do passado, da administração que foi destituída pelos accionistas da holding República Portuguesa na assembleia geral de 5 de Junho pp. Enquanto o PS não perceber isso jamais estará confortável na sua pele. E a escolha entre uma abstenção, um voto contra ou um voto a favor será sempre algo constrangedor e dramático para uma liderança que ainda agora começou a afirmar-se.

E não vale a pena iludir o presente e os problemas que este está a gerar para o futuro com os erros anteriores. Hoje lamento vivamente que o Presidente da República se tenha oposto à realização de uma auditoria às contas públicas à data em que foram marcadas eleições. Isso teria tornado tudo muito mais cristalino e evitar-se-ia que diariamente aqueles que irão ser julgados nas próximas eleições tentem encobrir a falta de soluções, a errância do discurso e das soluções que apresentam sobre as mais diversas matérias – TGV, TSU, impostos, IVA, corte nos subsídios, lembrança à última hora das subvenções dos políticos, aumento de meia hora no horário de trabalho, reforma autárquica a la carte, etc. -, para não lhe chamar incompetência, de que diariamente dão mostra nos mais variados fóruns, com os “buracos” que até agora não foram capazes de demonstrar preto no branco em que áreas ocorreram, quando se começaram a cavar, por culpa de quem e em que montantes exactos. E isto também interessa ao PS se este partido quiser libertar-se da clausura.

Permitir que se continue a atirar para cima do julgado, condenado e exterminado José Sócrates o peso da miopia, da ignorância, da ausência de soluções e da confusão de ideias dos actuais governantes, e, também, nalguns casos, da parolice bacoca dos novos Dr. Jekyll e Mr. Hyde, que tendo tido acesso ao laboratório anseiam ver o resultado das experiências que conduzem, não resolve nada. “Face ao que nos aconteceu, eu também penso que os responsáveis mereciam ir para a cadeia, mas não penso que seja possível mandá-los para lá. Seria um intolerável atropelo aos princípios do Estado de Direito. Fora do quadro da configuração dos ilícitos penais já estabelecida pela lei, a sanção das más políticas, mesmo das péssimas, só pode ser uma sanção política”, escreveu Vasco Graça Moura no DN.

Espero que o Orçamento de Estado não seja mais um monstro gerador de “monstrinhos”. Já bastam os que andam por aí, que falam, que dão conferências de imprensa e que tão cínica quanto alarvemente vão sorrindo de cada vez que pregam um prego no caixão.  

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