terça-feira, outubro 25, 2011

DE LER E DE SE LHE TIRAR O CHAPÉU

"Nos últimos cinquenta anos funcionalizou-se o poder judicial. Em vez de o poder judicial assumir o seu papel de verdadeiro órgão de soberania, comporta-se como um grupo burocratizado de funcionários públicos"

"O Programa de Governo não trouxe novidades. (...) Em relação ao governo da justiça, nem o memorando de entendimento nem o Programa de Governo apresentam qualquer ideia de reforma estrutural. Consequentemente, como defende o presente livro, nada de profundo poderá mudar nos próximos anos. (...) Tal como a economia portuguesa, a justiça tem um problema conjuntural e um problema estrutural. Conjunturalmente está congestionada, com uma dilação processual excessiva, sem a celeridade adequada às necessidades económicas e sociais, mal organizada, gastadora, desastrosa, ineficaz. Estruturalmente, tem uma cultura jurídica e judiciária jacobina inconsistente com a modernidade do século XXI (defeito em que está "bem" acompanhada por outros ordenamentos em profunda crise como em Espanha, Itália e França)".

"As medidas impostas pela chamada troika pretendem apenas resolver ou suavizar os aspectos fundamentais processuais e de gestão dos tribunais que afectam directamente as grandes empresas e os escritórios de advogados. O projecto FMI limita-se a aplicar as medidas que já estavam previstas pelo anterior Governo e agora novamente consagradas como Programa de Governo em Junho de 2011".   


A Fundação Francisco Manuel dos Santos prossegue o notável trabalho que tem vindo a desenvolver em prol de uma cidadania decente, cultural e civilizacionalmente mais bem formada e participativa. Prova da forma superior como tem sido dirigida por António Barrreto é o conjunto de interessantes ensaios que de forma regular - coisa rara entre nós - e numa linguagem acessível ao bom pai de família, conhece os escaparates das livrarias e, ainda mais notável, as prateleiras de alguns supermercados.
O livro que agora conheceu a luz do dia, pela módica quantia de € 3,50, devia ser de leitura obrigatória nas faculdades de Direito, no CEJ, por todos os operadores judiciários, parlamentares e, em especial, pelos senhores ministros. Sei que a ministra da Justiça não deixará de fazê-lo, com a atenção devida, tanto mais que o ensaio é suficientemente curto, importante e profundo para ser lido e relido de fio a pavio.
O prof. Nuno Garoupa, numa linguagem acessível, de uma penada, percorre todo o nosso sistema de justiça, apontando os males e apresentando soluções. O ensaio foi escrito e ficou concluído ainda em 2010, mas tem um epílogo, como se terá percebido pela transcrição que acima fiz, que o situa hoje e o mantém actual (que sempre estaria sem necessidade desse epílogo).
O ensaio é de tal forma importante que eu me atreveria a dizer que qualquer reforma da justiça que se pretenda fazer em Portugal com cabeça, tronco e membros, só por temeridade, ignorância ou crónica má fé se poderá afastar no essencial daquilo que o autor escreve. Do mapa judiciário aos conselhos, com numerosos exemplos, fazendo apelo ao direito comparado mais recente, e passando por pontos tão nevrálgicos como o sindicalismo nas magistraturas, o recrutamento, ensino e formação de magistrados, e sem fugir à análise das questões inerentes à legitimidade democrática, está lá tudo.
Muitos não gostarão da forma como as suas corporações se vêem retratadas, mas se não formos capazes de manter a distância dificilmente compreenderemos o alcance, a profundidade e a importância deste trabalho. Para um catedrático, difícil não é escrever muito e denso. Isso, melhor ou pior, todos são capazes de fazer. Difícil é escrever pouco, de forma simples e clara, dizendo quase tudo o que importa, sem nada deixar pela rama.
Mais do que um imperativo conjuntural, a leitura do ensaio de Nuno Garoupa é um imperativo cívico, de que nem a falta de tempo ou o preço poderão servir de desculpa para que não seja lido. 

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