quarta-feira, julho 20, 2011

VIA DO INSTANTE

O título que encima este texto não é da minha autoria. Ele faz parte de uma campanha publicitária de uma conhecida marca de bebidas, e visava utilizar o nome da única via de circulação longitudinal do Algarve que não tem rotundas nem semáforos, para promover a facilidade de abertura de uma garrafa de cerveja. Mas esse mesmo título poderia ser utilizado para ilustrar a facilidade com que se morre nessa pretensa "auto-estrada" onde em breve irão passar a ser cobradas portagens.

O Algarve é uma região das mais belas e acolhedoras de Portugal, lembrada uma vez por cada doze meses e que todos os anos salta para as páginas dos jornais e os noticiários pelas piores razões. Ora pelos disparates da silly season, o desemprego que não pára de crescer, a criminalidade importada, as apreensões de droga, o desaparecimento de menores, as violações de turistas, as alterações aos PDM, as violações urbanísticas e a megalomania imobiliária, ora pelas declarações estapafúrdias de alguns dirigentes ou, como hoje aconteceu, pelos acidentes rodoviários. Dir-se-ia que o Algarve, terra de gente contemplativa e que foge dos problemas como o diabo da cruz, de mar azul e bom vinho - sim, o Algarve produz algum do melhor vinho que se pode beber em Portugal - é um antro de vícios e desgraças. Quem nele honestamente vive e paga os seus impostos não merecia que assim fosse.

Ontem, dois autarcas que se especializaram no ataque aos governos socialistas e que há menos de três meses abençoavam jornadas de luta contra as portagens na Via do Infante, também conhecida como A22, vieram considerar uma "inevitabilidade" a entrada em vigor das cobranças nessa estrada. Nem de propósito, tal aconteceu no mesmo dia em que uma mãe deixou três filhos órfãos entre Boliqueime e Albufeira.

Muitos dirão que o problema terá sido o excesso de velocidade, só que sendo a A22 considerada uma auto-estrada, continua-se a ignorar que essa via em muitos dos seus locais não tem condições para que se circule a 120 km/hora, tantos são os perigos e as ratoeiras.

Se o chamado princípio do utilizador/pagador tem a sua lógica e deve ser aplicado em todo o espaço nacional, quer em razão da situação financeira do país, quer por razões de igualdade, não será menos correcto dizer que há razões que derivam da aplicação do princípio da igualdade que impedem a cobrança de portagens na A22 nas mesmas condições em que já estão e irão ser cobradas noutros locais.

Convirá recordar as condições em que essa estrada foi construída, a forma precipitada como ela foi acabada, reflectida, aliás, no rápido aparecimento de desníveis e de abatimentos do piso, a péssima qualidade do seu revestimento em muitíssimos locais, visível nas mudanças de tonalidade e textura, sinal também da forma como o cavaquismo promoveu obras de fachada e patos-bravos, sempre mais preocupado na obtenção de dividendos eleitorais de curto prazo do que em concretizar obra de qualidade e durabilidade.

O resultado de tudo isso, conjugado com uma péssima manutenção e um piso ultra-remendado, criou uma via de circulação ruidosa e perigosa, utilizada indistintamente por motociclos, ligeiros e pesados, que tem contribuído para a multiplicação de acidentes e desgraças, custos que duvido alguma vez tenham sido devidamente contabilizados mas que todos pagam.

Para além disso, circular de Inverno na A22, num dia de chuva, com ou sem nevoeiro, e em especial à noite, é uma espécie de roleta russa, face à inexistência de sinalização adequada e de reflectores ao longo da estrada que cumpram minimamente a sua função, em razão da elevada intensidade de trânsito nalguns percursos, múltiplas poças de água que geram efeito de aquaplaning, túneis com iluminação inadequada, separadores centrais perigosíssimos e que nem sequer conseguem evitar o encadeamento provocado pelos faróis dos carros que circulam em sentido contrário, insuficiente largura da estrada e das bermas em vários locais, o que obriga a suster a respiração quando se encetam manobras de ultrapassagem de alguns camiões ou autocarros que circulam a mais de 100km/hora e se tem na traseira uma carrinha de distribuição ou de turismo que insiste em aproveitar o nosso cone de ar para ganhar embalagem para a subida seguinte e não descansa de fazer sinais de luzes enquanto não tem via aberta, enfim, curvas mal desenhadas, desníveis não assinalados a meio dessas mesmas curvas e que assustam qualquer turista menos prevenido que acabe de entrar na região logo após a travessia da Ponte do Guadiana, mais um sem número de outros problemas que só quem circula nessa estrada diariamente e em quaisquer condições atmosféricas tem verdadeira noção. Se a isto somarmos a falta de escapatórias, a falta de vedação e de rails em muitos locais e a falta de marcações visíveis no pavimento, temos já um conjunto de razões que impediriam um Estado e um Governo sérios e de boa fé, fosse socialista, social-democrata ou não catalogável, de cobrar portagens na A22 em condições idênticas às das outras SCUT.

Acontece ainda que, para além do que ficou referido, a A22 não resiste a uma comparação com qualquer uma das restantes SCUT que vão ser objecto da cobrança de portagens, tão más e deficientes são as suas condições de circulação. A que se soma o facto de não existir no Algarve outra via de circulação, pelo menos tão má como aquela, que permita a deslocação de pessoas e bens entre localidades sem maiores sustos e paragens constantes, isto é, sem semáforos, rotundas e entroncamentos a cada cem metros, com peões e animais atravessando e deambulando pela via, de noite e de dia, faça chuva ou faça sol, seja Inverno ou Verão.

Ademais, a EN125 continua imersa num longo e preocupante, pela morosidade, processo de requalificação, cheia de pinos, marcações a amarelo, sinalização sem sentido, cruzamentos perigosos e desvios inexplicáveis, sendo os automobilistas tão depressa surpreendidos pela bicicleta de um miúdo que cruza despreocupadamente a estrada nos locais mais perigosos, como pelos britânicos que se aventuram a conduzir carros alugados assim que saem do aeroporto, encostados ao meio da via e a passo de caracol, ou pelas betoneiras que a partir das bermas levantam pó e projectam pedras sobre os outros veículos, sem esquecer as carrinhas que invertem a marcha por cima dos traços contínuos ou os pinos que surgem no meio da estrada, sem aviso prévio, em zonas de finalização de ultrapassagens e à entrada de curvas, como é o caso no troço Faro/Almancil próximo do cruzamento de São Lourenço.

Percebe-se que os dirigentes e autarcas do PSD/Algarve, depois de terem quase instigado os algarvios à revolta popular, tenham de repente emudecido, rendido e desistido de lutar, assim mostrando a sua face troca-tintas e ignorando aquilo que mais do que um anseio é uma razão de justiça que devia mobilizar todo o País. Seria muito fácil explicá-lo e demonstrá-lo aos outros portugueses, cidadãos como os residentes no Algarve, que como todos os demais trabalham, pagam impostos e vão suportar as SCUT.

Uma avaliação séria do princípio da igualdade, em especial na sua "dimensão correctiva", analisando as possíveis "medidas de acção afirmativa [...] de modo a atenuar ou corrigir desigualdades reais no exercício de certos direitos ou na sua fruição de certos bens públicos", ou a consideração do modo seria possível dar corpo a uma "obrigação de diferenciação" destinada a corrigir e compensar "a desigualdade de oportunidades", que levando à intervenção dos poderes públicos desse sentido a um conjunto de medidas capazes de minorarem as "desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural" entre o Algarve e outras regiões nacionais, era o mínimo que esses dirigentes deviam ter feito antes de terem vergonhosamente claudicado.

O Algarve, bem mais do que a Madeira, onde continua a não faltar dinheiro para a poncha, o foguetório e as sambistas rechonchudas, tem pago um preço elevadíssimo pela sua distância em relação aos centros de decisão. E aqueles que só se lembram da região para apanharem sol, garantirem votos e posições de poder, que recorrentemente se mostram incapazes de exercer devido à sua incompetência e distanciamento em relação àquele que é o interesse público, há muito que deviam ter assumido o desafio da melhoria das condições de circulação da A22, à semelhança do que acontece actualmente com a EN125. Só que em vez de o fazerem de uma forma organizada, coerente e sustentada, preferiram defender as couves dos seus quintais, entregando a defesa dos interesses do Algarve às casas de pasto que frequentam e a anónimas associações de utentes, que sem meios, formação ou acesso aos megafones institucionais, pouco mais podem fazer do manifestar o seu "direito à indignação".

A posição ontem assumida por Macário Correia e Desidério Silva não foi só uma rendição incondicional aos interesses do PSD ou aos ditames da "troika". Ela é a imagem da subserviência e falta de imputabilidade política de muitos dirigentes, dos actuais mas também dos que os antecederam, afinal uma demonstração, mais uma, de que mais importante do que a defesa, com números e argumentos objectivos dos interesses dos contribuintes - dos nacionais e dos estrangeiros que pelas nossas estradas circulam, e também morrem, deixando órfãos e famílias desfeitas em todas as estações do ano -, é garantir posições de simpatia junto de quem poderá amanhã oferecer um lugar de deputado, um cargo na administração de uma empresa ou distribuir as lentilhas que os agiotas nos deixarem.