sexta-feira, março 19, 2010

CADERNO DE MEMÓRIAS COLONIAIS

Francisco José Viegas, Eduardo Pitta, Gustavo Rubim e muitos mais, em termos que eu nunca serei capaz de dizer, já enalteceram a obra. Eu só agora a consegui ler. Podia ter sido o meu caderno se eu fosse mulher, se eu tivesse vivido em Lourenço Marques e se fosse filho do pai dela. Mas eu, que por mero acaso saí da Beira antes do 25 de Abril e fui apanhado pela revolução, encontrei sempre aí, nesse destino, o motivo para responder quando alguém, sabendo as minhas origens, pretendia catalogar-me de "retornado". Nessa altura eu andava no liceu Camões e ia ouvindo os relatos do que por lá se passava com outros do meu sangue. Apesar de tudo, a Beira foi sempre diferente. Mesmo com a eufemística DGS, o ambiente sempre foi mais aberto, mais tolerante, menos violento. A oposição democrática tinha aí outra força, outro saber. As pessoas tinham outra maneira de estar. E talvez até de dizer.
A linguagem é crua, por vezes mesmo violenta, convém dizê-lo. Não há paninhos quentes nem lamechiche. Mas está lá tudo. O cheiro das pessoas, a cor da terra, o hálito do ar, as brincadeiras de criança. Numa prosa esamgadora, que se quer lida e relida. Com muita atenção. Em especial por todos aqueles que nunca conheceram África. E nunca a hão-de conhecer.

"A metrópole era suja, feia, pálida, gelada. Os portugueses da metrópole eram pequeninos de ideias, tão pequeninos e estúpidos e atrasados e alcoviteiros. Feios, cheios de cieiro, e pele de galinha, as extremidades do corpo rebentadas de frio e excesso de toucinho com couves. Que triste gente! Divertiam-se a mofar connosco, atirando-nos à cara que estava difícil, pois estava, que aqui não havia pretinhos para nos lavarem os pés e o rabinho, tínhamos de trabalhar, os preguiçosos de merda, que nunca fizeram a ponta de um corno pela vida, que nunca souberam o que era construir uma vida e perdê-la, os tristes, os pequeninos, os conformados. Sabiam lá eles o que eram os pretos, e o que éramos nós e o que tínhamos acabado de viver, cobardes filhos de uma puta brava. Insignificantes cabrõezinhos, se eu havia de dizer a verdade, se eu havia alguma vez de dizer a verdade. Os lerdos das ideias, lentos, com conta no Montepio, doentes dos olhos por olhar de viés para esses gajos que vêm cá roubar o pouco que é da gente, que a gente cá tem, esses retornados, tão altivos como príncipes que perderam o trono, e que hão-de recuperá-lo, julgam eles, oh, se não!, porque nada atiça as ganas como perder, e perder bem, à americana. Tão feios, tão pobres de espírito esses portugueses que ficaram, esses portugueses de Portugal, curtidos de vinho do garrafão. Feios, sombrios, pobres, sem luz no rosto nem nas mãos. Pequenos".

Infelizmente, ainda há muitos assim. Mas um dia isto muda.