Aquilo que nos últimos dias se tem dito e escrito, e em especial transcrito, não pode deixar de ser visto e devidamente enquadrado à luz dos exemplos que ao longo dos anos nos têm chegado.
A utilização que tem sido feita do aparelho de Estado, das maiores e melhores empresas do país e dos partidos para a promoção de interesses privados, vaidades pessoais e distribuição de caramelos, não pode ser dissociada de tudo o que está a acontecer.
A transcrição das escutas à revelia do poder judicial, o relato escabroso de conversas privadas, a manipulação e utilização da comunicação social como meio para se atingir fins que de outra forma dificilmente seriam alcançados, não são nada de novo neste país e não começaram com nem por causa do actual primeiro-ministro.
A descredibilização do poder político é, também ela, indissociável do abastardamento da função legislativa, de um nepotismo disfarçado que invadiu todos as sectores da nossa vida pública, do recrutamento político ao empresarial, que tomou conta de vastas áreas da actividade bancária e que só não minou de vez a credibilização e o prestígio das Forças Armadas porque esta instituição, com todos os seus defeitos e apesar do conúbio de algumas das suas elites com as negociatas privadas, soube manter-se de certa forma impermeável ao que em seu redor ia acontecendo.
O que hoje acontece em Portugal não é diferente do que aconteceu, numa escala mais reduzida, na Macau dos anos oitenta e noventa do século passado. A interferência do poder político na comunicação social sempre foi uma constante. A aquisição e venda de jornais, a detenção de jornais por membros da classe política afecta ao poder, a instrumentalização da rádio e das televisões, o silenciamento dos opositores ou das simples vozes discordantes, sempre foram normais. Ainda esta semana José Pedro Castanheira o recordava nas páginas da Revista Única. Nomes como os de Fernando Lima ou Afonso Camões fizeram parte desse universo logístico de que o poder se serviu para fazer passar a sua mensagem. Por vezes sem qualquer suor, mas com muito sangue e algumas lágrimas.
E o que se passou na comunicação social, que inclusivamente envolveu a instrumentalização e contratação de jornalistas e a realização de vultuosos investimentos, sob a forma disfarçada de publicidade e de cadernos promocionais em jornais nacionais fora do território, bem como o financiamento da produção de programas televisivos, aconteceu também com empresas públicas, participadas e nalgumas privadas.
Muitos do que hoje falam contra o controlo da comunicação social em Portugal foram então instrumentos do poder político em Macau e mantiveram-se silenciosos quando a Amnistia Internacional chamava a atenção para o que se estava a passar.
Como tudo o que é ruim, essa mesma gente, e outra do mesmo jaez, tendo conquistado posições de poder e influência, metastizou-se em Portugal, penetrou a sua sociedade civil, tomou conta dos partidos e das instituições, apoderou-se do aparelho do Estado, e nele vão medrando independentemente de quem transitoriamente está no poder.
Falar alto em restaurantes não é pior do que ter o telemóvel a tocar nesse mesmo restaurante, em cerimónias públicas ou no cinema, e nesses locais atendê-lo permitindo que o vizinho do lado ouça o que se está a dizer, incomodando tudo e todos com tais modos e displicência.
Quando se olha para as notícias e se recorda, por exemplo, as agressões de um jogador de futebol a um seleccionador nacional, ou as agressões destes, verbais e físicas, a jogadores, jornalistas e até simples comentadores televisivos e a forma como depois a hierarquia reage, desculpando, ignorando, tolerando e protegendo, não há que estranhar a publicação de escutas, o arquivamento de processos, o ror de anos que demora a instrução de alguns até atingir a prescrição ou que haja membros da magistratura ou das forças armadas metidos nos negócios da bola, da comunicação social ou na aquisição de equipamentos. O "comissionismo" e a cobrança de favores são desde há muitos anos as actividades mais rentáveis deste país, e com profissionais em todas as áreas da nossa vida pública.
Por tudo isto é que quando há dias vi o último filme de Clint Eastwood, dei comigo a pensar no quão fácil seria mudar este país. Portugal não tem um Nelson Mandela, não tem um François Pineaar, e muito embora tenhamos os Lobos e Tomás Morais, a nossa tradição na oval não nos permite sonhar que eles tenham a capacidade aglutinadora dos Springboks, por muito grande que fosse a sua vontade.
Clint Eastwood, que não perde uma oportunidade para nos continuar a dar com a mestria só ao alcance dos génios verdadeiras lições de vida, voltou com Invictus a colocar o dedo na ferida.
A única liderança capaz de se afirmar e de poder levar um povo a lutar contra a adversidade, a contrariá-la, a rasgar novos caminhos contra a razão que outros quiseram dar ao seu próprio destino, forçando-o, como cantava o poeta, em cada esquina, em cada cruzamento, é aquela que se impõe por si, a que se impõe pelo exemplo, pelo trabalho, pela coragem, pela perseverança, mas também pela sua liberdade, independência, espírito crítico e capacidade de introspecção. É verdade aqui como é verdade em Carmel, em Itália, em França ou noutro lugar qualquer.
Enquanto não tivermos a humildade de reconhecermos isto, de nos convencermos, e aos que nos rodeiam, que não existe outro caminho; enquanto não tivermos elites que assim pensem e gente a comandar os destinos das instituições deste país com esse espírito, não servirá de nada andarmos para aqui a escrever, votarmos de quatro em quatro anos ou desfilarmos pela Avenida da Liberdade em defesa da liberdade de expressão e pelo direito à livre opinião. Porque os que hoje clamam por esses inalienáveis direitos, tirando os bem intencionados que sempre aparecem nestas ocasiões, são os mesmos que ontem silenciaram e ignoraram quando os mandaram como correspondentes para Nova York ou Bruxelas ou lhes deram um contrato em Macau; são os mesmos que confundem tolerância com subserviência; são os que hoje bajulam para amanhã recriminarem quando lhes tirarem o prato de lentilhas. Não sejamos hipócritas: Crespo, Moniz ou Moura Guedes não são melhores do que o José Saramago que foi director do DN ou do que o Fernando Lima que foi director do Centro de Informação e Turismo do Governo de Macau, chefe de gabinete de Martins da Cruz, director do mesmo DN ou é assessor político do Presidente da República. Da mesma maneira que o Carlos Queirós que em Moçambique apoiou a Frelimo e criticou os que fugiam ao regime no tempo de Samora Machel não é melhor do que o Scolari que agredia jogadores ou daquele outro que ainda agora ofendeu um comentador televisivo em pleno espaço público e à vista de todos para depois se desculpar dizendo que tudo não passou de uns empurrões, aparentemente "normais" porque o agredido era seu conhecido há mais de vinte anos.
Em causa não está uma qualquer cultura de tolerância. Nem a democracia ou a liberdade é posta em risco porque meia dúzia de atabalhoados, cretinos e almas servis a isso se predispõem.
Em causa continua a estar, como sempre esteve, o haver gente capaz de liderar pelo exemplo, o de haver gente capaz de dizer "sou senhor do meu destino, capitão da minha alma", sem para isso ter de descer a Avenida da Liberdade, ir para a rua defender o República ou a Rádio Renascença, assinar manifestos, dar palmadinhas nas costas do primeiro que lhe aparece ou ter de se esforçar para ser entrevistado durante o primetime teelvisivo para se poder afirmar entre os seus. E de haver dentro dos partidos quem esteja disponível a ser escolhido pelo exemplo, não iludindo o passado ou as fraquezas; e quem esteja disposto a escolher pelo exemplo. E não pela manjedoura ou pelo clã.
As coisas são bem mais simples e muito menos maquiavélicas do que aquilo que possam parecer.
A utilização que tem sido feita do aparelho de Estado, das maiores e melhores empresas do país e dos partidos para a promoção de interesses privados, vaidades pessoais e distribuição de caramelos, não pode ser dissociada de tudo o que está a acontecer.
A transcrição das escutas à revelia do poder judicial, o relato escabroso de conversas privadas, a manipulação e utilização da comunicação social como meio para se atingir fins que de outra forma dificilmente seriam alcançados, não são nada de novo neste país e não começaram com nem por causa do actual primeiro-ministro.
A descredibilização do poder político é, também ela, indissociável do abastardamento da função legislativa, de um nepotismo disfarçado que invadiu todos as sectores da nossa vida pública, do recrutamento político ao empresarial, que tomou conta de vastas áreas da actividade bancária e que só não minou de vez a credibilização e o prestígio das Forças Armadas porque esta instituição, com todos os seus defeitos e apesar do conúbio de algumas das suas elites com as negociatas privadas, soube manter-se de certa forma impermeável ao que em seu redor ia acontecendo.
O que hoje acontece em Portugal não é diferente do que aconteceu, numa escala mais reduzida, na Macau dos anos oitenta e noventa do século passado. A interferência do poder político na comunicação social sempre foi uma constante. A aquisição e venda de jornais, a detenção de jornais por membros da classe política afecta ao poder, a instrumentalização da rádio e das televisões, o silenciamento dos opositores ou das simples vozes discordantes, sempre foram normais. Ainda esta semana José Pedro Castanheira o recordava nas páginas da Revista Única. Nomes como os de Fernando Lima ou Afonso Camões fizeram parte desse universo logístico de que o poder se serviu para fazer passar a sua mensagem. Por vezes sem qualquer suor, mas com muito sangue e algumas lágrimas.
E o que se passou na comunicação social, que inclusivamente envolveu a instrumentalização e contratação de jornalistas e a realização de vultuosos investimentos, sob a forma disfarçada de publicidade e de cadernos promocionais em jornais nacionais fora do território, bem como o financiamento da produção de programas televisivos, aconteceu também com empresas públicas, participadas e nalgumas privadas.
Muitos do que hoje falam contra o controlo da comunicação social em Portugal foram então instrumentos do poder político em Macau e mantiveram-se silenciosos quando a Amnistia Internacional chamava a atenção para o que se estava a passar.
Como tudo o que é ruim, essa mesma gente, e outra do mesmo jaez, tendo conquistado posições de poder e influência, metastizou-se em Portugal, penetrou a sua sociedade civil, tomou conta dos partidos e das instituições, apoderou-se do aparelho do Estado, e nele vão medrando independentemente de quem transitoriamente está no poder.
Falar alto em restaurantes não é pior do que ter o telemóvel a tocar nesse mesmo restaurante, em cerimónias públicas ou no cinema, e nesses locais atendê-lo permitindo que o vizinho do lado ouça o que se está a dizer, incomodando tudo e todos com tais modos e displicência.
Quando se olha para as notícias e se recorda, por exemplo, as agressões de um jogador de futebol a um seleccionador nacional, ou as agressões destes, verbais e físicas, a jogadores, jornalistas e até simples comentadores televisivos e a forma como depois a hierarquia reage, desculpando, ignorando, tolerando e protegendo, não há que estranhar a publicação de escutas, o arquivamento de processos, o ror de anos que demora a instrução de alguns até atingir a prescrição ou que haja membros da magistratura ou das forças armadas metidos nos negócios da bola, da comunicação social ou na aquisição de equipamentos. O "comissionismo" e a cobrança de favores são desde há muitos anos as actividades mais rentáveis deste país, e com profissionais em todas as áreas da nossa vida pública.
Por tudo isto é que quando há dias vi o último filme de Clint Eastwood, dei comigo a pensar no quão fácil seria mudar este país. Portugal não tem um Nelson Mandela, não tem um François Pineaar, e muito embora tenhamos os Lobos e Tomás Morais, a nossa tradição na oval não nos permite sonhar que eles tenham a capacidade aglutinadora dos Springboks, por muito grande que fosse a sua vontade.
Clint Eastwood, que não perde uma oportunidade para nos continuar a dar com a mestria só ao alcance dos génios verdadeiras lições de vida, voltou com Invictus a colocar o dedo na ferida.
A única liderança capaz de se afirmar e de poder levar um povo a lutar contra a adversidade, a contrariá-la, a rasgar novos caminhos contra a razão que outros quiseram dar ao seu próprio destino, forçando-o, como cantava o poeta, em cada esquina, em cada cruzamento, é aquela que se impõe por si, a que se impõe pelo exemplo, pelo trabalho, pela coragem, pela perseverança, mas também pela sua liberdade, independência, espírito crítico e capacidade de introspecção. É verdade aqui como é verdade em Carmel, em Itália, em França ou noutro lugar qualquer.
Enquanto não tivermos a humildade de reconhecermos isto, de nos convencermos, e aos que nos rodeiam, que não existe outro caminho; enquanto não tivermos elites que assim pensem e gente a comandar os destinos das instituições deste país com esse espírito, não servirá de nada andarmos para aqui a escrever, votarmos de quatro em quatro anos ou desfilarmos pela Avenida da Liberdade em defesa da liberdade de expressão e pelo direito à livre opinião. Porque os que hoje clamam por esses inalienáveis direitos, tirando os bem intencionados que sempre aparecem nestas ocasiões, são os mesmos que ontem silenciaram e ignoraram quando os mandaram como correspondentes para Nova York ou Bruxelas ou lhes deram um contrato em Macau; são os mesmos que confundem tolerância com subserviência; são os que hoje bajulam para amanhã recriminarem quando lhes tirarem o prato de lentilhas. Não sejamos hipócritas: Crespo, Moniz ou Moura Guedes não são melhores do que o José Saramago que foi director do DN ou do que o Fernando Lima que foi director do Centro de Informação e Turismo do Governo de Macau, chefe de gabinete de Martins da Cruz, director do mesmo DN ou é assessor político do Presidente da República. Da mesma maneira que o Carlos Queirós que em Moçambique apoiou a Frelimo e criticou os que fugiam ao regime no tempo de Samora Machel não é melhor do que o Scolari que agredia jogadores ou daquele outro que ainda agora ofendeu um comentador televisivo em pleno espaço público e à vista de todos para depois se desculpar dizendo que tudo não passou de uns empurrões, aparentemente "normais" porque o agredido era seu conhecido há mais de vinte anos.
Em causa não está uma qualquer cultura de tolerância. Nem a democracia ou a liberdade é posta em risco porque meia dúzia de atabalhoados, cretinos e almas servis a isso se predispõem.
Em causa continua a estar, como sempre esteve, o haver gente capaz de liderar pelo exemplo, o de haver gente capaz de dizer "sou senhor do meu destino, capitão da minha alma", sem para isso ter de descer a Avenida da Liberdade, ir para a rua defender o República ou a Rádio Renascença, assinar manifestos, dar palmadinhas nas costas do primeiro que lhe aparece ou ter de se esforçar para ser entrevistado durante o primetime teelvisivo para se poder afirmar entre os seus. E de haver dentro dos partidos quem esteja disponível a ser escolhido pelo exemplo, não iludindo o passado ou as fraquezas; e quem esteja disposto a escolher pelo exemplo. E não pela manjedoura ou pelo clã.
As coisas são bem mais simples e muito menos maquiavélicas do que aquilo que possam parecer.