quinta-feira, janeiro 07, 2010

VINTE E QUATRO HORAS

Vinte e quatro horas é um tempo ínfimo na vida de uma nação. Mesmo em relação ao cidadão médio, vinte e quatro horas representam a mais pequenina fracção do todo que é a sua própria vida. Podem atrasar mas não inviabilizam.
Quem olhe com alguma atenção para dois ou três factos conhecidos nas últimas vinte e quatro horas não pode deixar de ficar aturdido. Aturdido e revoltado.
Em 2005, uma das primeiras medidas do então ministro da Justiça foi reduzir a metade o período de férias judiciais que vigorava há décadas. Logo vieram as corporações criticar a demagógica medida, realçando o quanto ela tinha de errado, invocando a necessidade da manutenção do status quo vigente já que não era essa a razão maior para os atrasos na justiça. Todavia, a medida parecia colher algum aplauso junto da opinião pública e avançou.
Quatro anos volvidos, período que como todos sabem é ligeiramente superior a vinte e quatro horas, o novo ministro da Justiça confrontado com a perfeita inutilidade da medida então tomada e dando razão às críticas que vinham de um lado e do outro da barricada - muitas diligências continuavam a não se fazer depois de 15 de Julho porque já havia magistrados de férias e poucas eram as diligências agendadas entre 1 e 15 de Setembro porque também havia quem ainda não tivesse chegado de férias - anunciou a sua alteração. Agora, pelo que percebi, não se visa a reposição do sistema anterior a 2005, mas tão só suspender os prazos entre 15 e 30 de Julho, mantendo durante o mês de Agosto os tribunais encerrados.
A Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) já veio dizer que está contra essa decisão "corporativa", pois no seu entender ela apenas prossegue "os interesses dos advogados" e "só serve para resolver o problema das férias dos advogados". Eu não sei o que têm as férias dos advogados de tão extraordinário que desencadeiem a "ira" da associação sindical, tanto mais que trabalho sozinho e não tenho a quem recorrer para poder ir de férias descansado, embora também saiba que quando um juiz está de férias há colectivos que ficam pendurados. E não são poucas as vezes, como toda a gente sabe, em que os processos também não andam mesmo quando os senhores juízes não estão de férias, por razões que só eles sabem, e que os prazos para eles são normalmente considerados como meramente indicativos, ao contrário do que sucede com as partes, razão para a qual há processos há vários anos à espera de uma decisão enquanto o cidadão contribuinte espera, desespera e continua a pagar a sofreguidão fiscal.
Ao mesmo tempo que a ASJP se pronunciava por causa do problema das férias, os portugueses ficaram a saber que cerca de 99,5% dos professores eram habitualmente classificados entre o Bom e o Muito Bom, ou seja, houve menos de 0,5% de professores classificados com Regular ou Insuficiente, o que leva a ministra da Educação a considerar que nem todos poderão chegar ao topo da carreira, sob pena de termos carreiras quadradas e não piramidais. E que a mim me leva à conclusão óbvia de que os alunos portugueses são todos burros, já que com professores tão bons não há outra explicação para as taxas de insucesso escolar e os níveis arrepiantes de ignorância e iliteracia a todos os níveis patenteados.
A FENPROF, que como diria Manuel Laranjeira é uma organização representativa de uma parte dos professores dirigida por um conjunto de líderes messiânicos encabeçados por um Moisés, que a meu ver transmite à opinião pública a ideia de que os seus seguidores deverão ir constantemente errando na sua luta até que lhes seja indicado o caminho da salvação, veio logo esclarecer a nação de que a ministra fazia demagogia e que as suas declarações foram "infelizes", já que os números divulgados iludiam o facto de a esmagadora maioria dos professores terem sido "avaliados com base em critérios difíceis de diferenciar" (sic). Por tal razão, mesmo antes de se voltarem a reunir, já retomaram a ameaça feita em 30 de Dezembro de "recorrer imediatamente à Assembleia da República". Quer isto dizer que sem a Intersindical para impor os seus pontos de vista, o recurso, em caso de falhanço, deverá ser feito ao Parlamento, já que lá deverá haver alguém disposto a defender e impor ao Governo legítimo da nação as teses da FENPROF.
Tudo isto me faz ainda mais confusão quando lá fora, um dos mais influentes jornais de Itália, lido em toda a Europa e no mundo, o Corriere della Sera, escreve que a inteligência de um emigrante português está a revolucionar o futebol italiano, a ponto de dizer que ele poderá não conhecer o jogo como o conhece um técnico italiano, "mas usa-o melhor" e que o erro dos seus colegas foi terem-no julgado pelos parâmetros italianos. A sua força não está na adopção de modelos conhecidos, nem no instinto, mas acima de tudo na inteligência, o que o conduziu a romper com os modelos tradicionais, formando uma equipa praticamente inatacável. O resultado está à vista: a sua equipa comanda destacada o campeonato italiano pelo 2º ano consecutivo e prepara-se para arrecadar mais um título. Ver o que Mourinho faz em Itália, ou o que antes fez em Inglaterra, e olhar para o que entre nós se vai fazendo, não pode deixar de ser devastador.
Se há pouco referi Laranjeira não foi por acaso. É que 100 anos depois, tudo aquilo que ele disse e escreveu sobre nós continua actual e, lamentavelmente, ignorado.
Entre outras coisas, escrevia ele nesse texto lapidar que é "O Pessimismo Nacional", que pelo espírito continuamos a ser um povo da pedra lascada e isto porque apenas "uma fracção do cérebro português acompanhou o espírito contemporâneo na sua gigantesca evolução; e precisamente porque essa minoria civilizada não soube ou não pôde impor-se à maioria da nação e arrastá-la consigo neste avanço progressivo; precisamente desse desnivelamento - é que deriva essa crise sobreaguda do pessimismo em que se está debatendo o povo português", acrescentando que "essa harmonia que parece reinar na engrenagem social portuguesa é uma harmonia toda fictícia", "a nossa organização social é uma organização mentirosa, sem estabilidade, sem unidade, uma ficção de engrenagem civilizada, encobrindo a torpeza dum parasitismo desenfreado e impudente".
Ao ler e ouvir o que dizem a ASJP, a FENPROF, ao ler o que lá fora escrevem sobre Mourinho ou o que ontem com toda a lucidez afirmou Jaime Gama ao empossar a nova comissão parlamentar dedicada à corrupção, dizendo não querer no final um tratado de sociologia da corrupção mas um relatório com propostas concretas e em tempo útil, não posso deixar de ler e reler o que escreveu Manuel Laranjeira. E de me interrogar constantemente sobre o que, malfadadamente, teimosamente, insisto em ler, ouvir e ver.
Como escrevia Laranjeira, "é preciso começar desde o princípio", "refazer tudo, refundir a sociedade portuguesa de baixo para cima, incansavelmente, obstinadamente, com o desespero tenaz e glacial de quem se debate contra a morte", canalizando rios de "energia perseverante", "sob pena de nos vermos morrer ingloriamente, indignamente, relesmente, com o desprezo dos outros - e de nós mesmos".
Afinal, o que está em causa é evitar que continuemos a assistir ao triunfo dos "sem-vergonha", dos "sem-escrúpulos", dos que têm por princípio moral "viver a vida sem ideal", alterando esta "ficção de organização civilizada" em que definhamos para que os poucos que temos com "verdadeira envergadura messiânica" não continuem a morrer esquecidos, abandonados e desiludidos numa qualquer universidade californiana ou num tugúrio, "aborrecendo os homens e a vida". Enfim, acabando de uma vez por todas com os "messias de quadrilha", esses que têm "um ventre esfíngico e mais difícil de saciar do que o ventre misterioso das nações vivas, quando andam à caça das nações mortas para as devorar".
Não me interpretem mal. Nada tenho contra a ASJP, a FENPROF ou este ou aquele ministro. Vivemos todos na mesma casa, na mesma colmeia, e cada um vai defendendo os seus interesses, saciando a sua fome como pode. Às vezes também como não pode, como se vai vendo com alguns banqueiros, alguns empresários e alguns autarcas. Mas continuo a pensar que qualquer cidadão honrado que leia o que Laranjeira escreveu, ouça as notícias de hoje e acompanhe o que se passa, não pode deixar de ficar possesso com aquilo que andamos a fazer a nós próprios. Seria bom que todos ganhássemos juizinho.
E, já agora, se não for pedir muito, que se dê a conhecer Laranjeira nas escolas. Ou, pelo menos, o que ele escreveu. Nesse combate é que a ASJP, a FENPROF e o governo de José Sócrates se deviam empenhar. É que talvez depois disso, quem sabe se daqui a uns anos, não seria bem mais fácil às futuras gerações conciliarem as férias judiciais com a avaliação dos professores, o combate à corrupção com o interesse nacional e, ainda por cima, saberem quem foram Laranjeira, Antero ou Soares dos Reis.
Vinte e quatro horas é muito tempo neste país. Desgraçadamente.