1 - O ano de 2009 terminou com uma crise social, económica e financeira, grave. Terminou mas, infelizmente, não acabou com ela.
2 - Crise política para já não há, nem será bom para o país que venha a haver. No entanto, a leitura que tem sido feita por alguns analistas dos discursos alusivos à quadra que amanhã terminará, proferidos pelo primeiro-ministro e pelo Presidente da República, parece ver nas entrelinhas sinais de divergência onde eles não existem.
3 – Se bem que, quer um quer o outro, tenham as respectivas agendas condicionadas, pela crise mas também pela situação internacional e o calendário das presidenciais, não é rigoroso que entre eles exista divergência em relação às questões essenciais que preocupam os portugueses.
4 – Digo-o com a convicção de que ambos estão preocupados com o evoluir da conjuntura, com os níveis dramáticos que o desemprego está a atingir (o Algarve começa a ser um caso extremo), com o aumento da pobreza, com a queda do investimento produtivo e das receitas, com a necessidade de se fazer descer o défice público até níveis aceitáveis, em suma, os dois têm consciência da necessidade imperiosa de resolver os problemas criados por meia dúzia de banqueiros e de economistas irresponsáveis.
5 – O problema é que a eficácia de acção desses protagonistas esbarra num parlamento fragmentado, numa justiça totalmente inoperante e profundamente desacreditada aos olhos dos cidadãos, situação dificilmente reversível na próxima década, e num conjunto de actores políticos que vão perdendo credibilidade a um ritmo superior ao das tonitruantes declarações que proferem.
6 – Ao contrário de outros, que vêem nisso uma questão de afirmação do regime e dos princípios constitucionais, estou convencido de que a confrontação a propósito do “casamento entre pessoas do mesmo sexo” não constitui o alfa e o ómega da luta política entre o Governo e a Presidência e que o resultado que sair da discussão parlamentar será ingrato para qualquer uma das partes, remetendo para segundo plano as discussões que interessam ao país.
7 – Sem querer antecipar cenários, acredito que o PR vai vetar a lei que sair do Parlamento sobre essa matéria, seja por razões políticas, seja por razões constitucionais.
8 – Para o PS e o Governo será sempre uma questão incómoda, já que o respeito por um compromisso eleitoral, de alcance e consequências bastante limitadas, convenhamos, em especial pela importância que lhe quiseram atribuir, não afastará os demais e obrigará a uma maior atenção a outros temas que começam a ser bem mais prioritários, como a regionalização, a urgente criação de emprego útil, ainda que com a alavanca do Estado, e a protecção de outras minorias, silenciosas e sem poder de grito, que se não forem devida e rapidamente atendidas poderão acabar em situações extremas de pobreza a que ninguém poderá ficar alheio e pelas quais seremos todos responsáveis.
9 – Se não houver uma rápida inversão do discurso, mas acima de tudo da agenda, corporizada nas infelizes intervenções que fecharam 2009, a erosão da confiança no PS e nos seus dirigentes será mais difícil de salvaguardar do que encontrar um líder para o PSD.
10 – O aprofundamento das clivagens ideológicas dentro do grupo parlamentar do PS, o divórcio entre as prioridades de Lisboa e as regiões, e o rebentamento indiscriminado de petardos por parte de alguns dirigentes menores que não podem passar sem o quinhão de protagonismo que o regime lhes deu - o que tem vindo a acontecer com a indisfarçável complacência, quando não aplauso, do secretário-geral –, terá o seu momento alto na votação das diversas alternativas que o Governo e os partidos colocarão à Assembleia da República sobre o “casamento entre pessoas do mesmo sexo”.
11 – Não dar liberdade de voto aos deputados do PS sobre essa matéria tornará mais difícil esconder a fragilidade da coligação dominante do partido e acentuará a natureza transitória da actual liderança e daqueles em quem ela se apoia, agitando o espectro da antecipação de eleições e dando novos e beligerantes argumentos a quem, inicialmente de forma sorrateira, a partir do Verão passado de modo mais evidente, penetrou em Belém e a partir daí, perdidos os pruridos de equidistância, tenta condicionar a agenda política.
12 – A natureza ideológica do confronto que hoje se vive entre as diversas sensibilidades internas do PS, obriga a uma actuação moderada dos seus dirigentes e a um exercício discreto da liderança, tão inteligente quanto pragmática, o que será dificilmente compaginável com os gritos estridentes de alguns vice-presidentes do grupo parlamentar que parecem gozar de um beneplácito cesarista.
13 – A opção por uma estratégia de distribuição de incentivos selectivos, dentro do partido mas igualmente à direita e à esquerda para viabilizar o orçamento, como forma de acomodar diferentes modos de entender e de pensar, revelar-se-á seguramente contraproducente se com essa estratégia se estiver a condicionar a liberdade de voto dos deputados do PS em matérias das quais não depende o futuro do regime, nem o sucesso da legislatura.
14 - Admitir que a discussão de um tema tão fracturante na sociedade portuguesa, como é o do “casamento entre pessoas do mesmo sexo”, poderá ser resolvido com a imposição da disciplina de voto ao grupo parlamentar, é aceitar que a futura liberdade de acção do primeiro-ministro para o cumprimento de todas as demais obrigações que decorrem do programa eleitoral do PS possa ficar refém de oportunismos circunstanciais cujos custos para o partido e para o país poderão ser maiores, e mais fatais, do que os temporais que assolaram o Oeste.
15 - Só José Sócrates poderá decidir se prefere dar liberdade de voto aos deputados do PS e garantir o sucesso da legislatura e das presidenciais, ficando ele próprio com mais liberdade de acção, ou se, ao invés, garantindo a disciplina de voto, preferirá agudizar as clivagens internas, perdendo força e autonomia, dentro e fora do partido.