sexta-feira, dezembro 18, 2009

DEZ ANOS DEPOIS VOLTAMOS A FALAR DE MACAU

Amanhã cumprir-se-á o décimo ano sobre o último dia da presença portuguesa em Macau. Há cerca de um mês, o último governador do território deu uma entrevista mostrando-se preocupado com o facto da última bandeira portuguesa arreada do Palácio da Praia Grande continuar guardada numa gaveta em casa do seu ex-ajudante de campo, e aproveitou o tempo de antena que lhe foi generosamente concedido para lamuriar a impossibilidade de até agora não ter podido fazer a entrega da referida bandeira ao Presidente da República. Com uma encenação à altura, pompa e circunstância, diria eu, já que foi também assim que saímos de Macau há 10 anos.
A preocupação com o destino da bandeira, sendo legítima de um ponto de vista histórico, é ao mesmo tempo a evidência, se outras não houvesse, de que a última administração portuguesa de Macau, os sucessivos governos da República e todos aqueles que tinham por missão preservar e defender a herança histórica e cultural de Portugal no Oriente e fortalecer os laços com a China e as demais nações asiáticas, se preocuparam demasiado com bandeiras e fogos-de-artifício, esquecendo aquilo que importava, aquilo que interessava à perenidade dos povos e das relações que entre diferentes se foram estabelecendo ao longo de séculos.
Será injusto dizê-lo em relação a um homem que muito estimo e admiro, Jorge Sampaio, mas que, infelizmente, tendo tido a oportunidade de deixar uma outra imagem de Portugal em Macau, optou pela mais cómoda posição de manter as aparências de uma transição conseguida. Movido por aquilo que ele próprio e Magalhães e Silva consideravam ser o interesse nacional, o então Presidente da República preferiu salvar a decadente, sinistra e incompetente administração de Rocha Vieira para não assumir os riscos da ruptura e garantir um outro tipo de herança que estivesse para lá dos pastéis de nata que tanto orgulham o prof. Narana Coissoró.
Apesar de tudo, dez anos volvidos, e erros à parte, verificamos que o balanço da transição de Macau é francamente positivo, que ali se continua a viver de acordo com os padrões sociais e económicos que lá foram deixados por nós e que aquilo que alguns temiam não aconteceu. Macau não se fechou e o governo da Região Administrativa e Especial de Macau (RAEM) soube continuar a trilhar o seu caminho autonómico e a cultivar a sua marca.
Nem tudo terá sido exemplar, mas a cidade cresceu, desenvolveu-se, a população aumentou e a estabilidade foi mantida. Curiosamente, a liberdade de imprensa e a livre expressão do direito de opinião não estão hoje mais cerceados do que estavam em 1999, tendo terminado, entre outras coisas, a atribuição arbitrária de subsídios a alguns jornais.
É certo que há quem hoje, e com toda a razão, critique com veemência o panorama da Justiça local, as actuações do Ministério Público de Macau e do serviço anti-corrupção. Mas isso, incluindo as violações do segredo de justiça de que fala o meu colega e amigo João Miguel Barros e que alertaram a Amnistia Internacional, também faz parte da cultura judiciária que lá deixámos, e pela qual foram responsáveis alguns dos que, tendo então tecido loas aos disparates, agora criticam a deficiente formação de alguns operadores judiciários e as práticas menos consentâneas com os padrões que caracterizam um Estado de Direito democrático.
De qualquer modo, estou satisfeito por ver que se irão completar 10 anos de administração chinesa sob o signo da paz, da tranquilidade e do desenvolvimento.
Não deixa de ser curioso, porém, e ao mesmo tempo triste assinalar, que aquilo que tanta confusão fazia às autoridades portuguesas seja hoje uma exigência da população de Macau. Falo do apelo a uma maior democratização do Território atestado por uma associação cujo peso é desde há muito indiscutível na sociedade e vida política local e que foi um interlocutor privilegiado, e temido, das autoridades portuguesas: os "Kai Fong".
Os resultados do inquérito recentemente conduzido por esta associação revelam que 45% dos residentes - 10 anos depois, sublinhe-se - gostariam de ver mais deputados eleitos por sufrágio universal e de ver alargado o colégio eleitoral que escolhe o Chefe do Executivo. Para além disso, 32,1% dos inquiridos reclamam um governo limpo e transparente, gostariam de ver melhorada a qualidade do serviço prestado pelas polícias, de ver uma maior celeridade na justiça e de terem julgamentos e sentenças de melhor qualidade.
Quer isto dizer que aquilo que deviam ter sido as apostas de Portugal, desvalorizadas pelos nossos governantes à custa de mil e um argumentos de conveniência, são agora exigências da própria população de Macau.
Numa altura de festa não ficaria bem admitir, nem seria rigoroso, dizer simplesmente que falhámos na democratização, que falhámos numa maior participação, que falhámos no combate à corrupção e que falhámos na construção de um sistema de justiça que não tivesse deixasse reproduzir-se lá todos os defeitos de que aqui nos queixamos. Isso seria admitir que falhámos em quase tudo o que era importante para Macau e isso não me parece correcto dizer.
Alguma coisa se fez, mas que ficámos muito aquém do que podíamos ter feito, muito aquém em função dos meios de que dispúnhamos, lá isso ficámos.
E se dúvidas houvesse quanto a este ponto bastaria atentar, para lá dos resultados do inquérito dos Kai Fong, nos resultados obtidos nos últimos 10 anos em matéria de política da língua, de incremento de relações culturais e económicas entre Portugal, a China e Macau ou olhar para os números desoladores da Escola Portuguesa de Macau, cuja diminuição de alunos não é apenas explicada pela redução do número de portugueses residentes, para se perceber onde errámos.
Não era preciso ser bruxo para ter percebido o que se iria passar depois de 1999. Se hoje Macau pode celebrar o décimo aniversário da mudança de bandeira, Portugal bem pode agradecer à R.P. da China, a Edmundo Ho e, em especial, à comunidade portuguesa residente e ao incansável povo de Macau a ajuda que lhe foi dada e o facto destes 10 anos serem apesar de todos os escolhos e da crise económica mundial um exemplo de sucesso.
No próximo domingo, quando Fernando Chui suceder a Edmundo Ho, espero que os portugueses sejam capazes de pensar, um instante que seja, em Macau. O seu povo merece-o e seria ingratidão não o fazer em relação a quem nos deu tantas provas de fé e de amor ao longo de séculos.
E no que diz respeito à bandeira, esse candente problema que aflige o senhor general, se há interesse em preservá-la, e eu entendo que sim já que ela faz parte da nossa memória colectiva, então que quem a tem faça rapidamente o que já devia ter sido feito e a entregue a quem de direito. Mas que o faça discretamente, sem alarido nem grandes cerimónias, como convém a quem deixou o trabalho incompleto, coisa que os portugueses, os macaenses e os chineses, tolerantes e condescendentes como sempre têm sido no julgamento histórico, já lhe terão perdoado. Por mim falo.

[também publicado no Delito de Opinião]