António pregou aos peixes. Este senhor prega aos chicos. O primeiro chegou a Santo. O segundo não aspira a tal, mas tem tudo para isso. A única diferença entre um e o outro é que enquanto o primeiro pregou para os peixes, que o escutaram, o segundo prega para chicos que não percebem o que ele diz porque sofrem de iliteracia. É que apenas aprenderam a conjugar dois verbos na perfeição: sacar e safar. Em mais de trinta anos de democracia este país não viu outra coisa que não fosse uma cultura de chico-espertismo. Uma criança não vai para a escola para aprender. Vai para sacar uma notas que depois lhe permitam safar-se lá fora e assim continuar a sacar outras notas que depois lhe permitam continuar a safar-se. E é assim pela vida fora até à hora da reforma. Alguns há que conjugam esses verbos tão bem que mesmo depois da reforma continuam a conjugá-los: a sacar e a safar-se. De caminho também sacam algum para os filhos e para a família e ajudam os amigos a safarem-se. Na actividade privada ou em empresas públicas, na tropa ou na banca, com os subsídios à agricultura ou os fundos europeus. Sem esquecer a política, onde uma multidão de chicos entra e sai para sacar e safar-se. Do general ao trolha, do banqueiro ao arrumador, do taberneiro ao escritor. É certo que há um tratado que continua por escrever, mas escrever para quê se já todos o leram. Nas entrelinhas. No recato de um gabinete, numa chamada telefónica, num piscar de olhos cúmplice. E alguns há que dominam esse tratado na perfeição. Pouparam o tempo da leitura e safaram-se. Na política houve quem atravessasse todo o arco a safar-se. Da esquerda à direita, de Lisboa a Bruxelas. Um discurso aqui, uns votos ali, um saquezito aqui, uma safadeza ali, uma peúgas para mim, uns bilhetinhos para ti. Ernâni Lopes é um homem bom. António também era. Os homens bons são homens decentes. Pena é que na casa dos chicos ninguém os aponte como exemplo. Se este país fosse educado na seriedade, no trabalho e na honestidade não existiria. Seria um país de homens bons, um país decente. Um país de Ernânis. Não teríamos espertalhões. Não haveria chico-esperto que se safasse, que conseguisse sacar alguma coisa. Os tribunais não serviriam para nada. Nenhum magistrado se safaria. Na carreira, evidentemente. O Conselho Superior de Magistratura seria um corpo espúrio do regime. O Millennium não pagaria dividendos. O Porto nunca teria sido campeão. O Colégio Militar não existiria. Portugal, muito provavelmente, também não existiria como país. Como Camões, Sena ou Cardoso Pires também nunca teriam existido. Eles ainda são hoje, para os sucateiros deste país, para os árbitros, para os senhores que mandam na bola e nos bares de alterne, o exemplo do fracasso. Já de Saramago não dizem o mesmo. Do Diário de Notícias ao Nobel, lá se foi safando: safou-se do PREC, de Cunhal, do PCP, do Ribatejo, das portuguesas e de Portugal. Até chegar a Estocolmo. Escrevendo, ora com vírgulas, ora sem vírgulas, lá se foi safando e sacando os respectivos direitos de autor. Medina Carreira também nunca teria existido, embora haja quem diga que este senhor não existe de todo e que não passa de um fantasma da República. E Cavaco Silva também não seria Presidente da República. Nem José Sócrates primeiro-ministro. Nem eu estaria onde estou. Nem este blogue (nem muitos outros mais) teria conhecido as luzes da blogosfera. Ernâni Lopes, que sabe de economia como poucos, devia meditar nisto. Ele faz-me lembrar alguns juízes, alguns advogados e alguns políticos que vivem fora do mundo. Os gatos fedorentos não existem por acaso. Sacando e safando-se. A mim ninguém me ensinou a conjugar o verbo sacar. E o safar ainda menos. Tenho pena. Por mais que tente nunca conseguirei aspirar a ser um sucateiro respeitável. Ou um "advogado de sucesso". A mim limitaram-se a dizer-me que a decência não pode ser cabulada. A decência não se ensina. Transmite-se. E para isso é preciso tê-la. Como aos tomates. Ernâni Lopes devia ter percebido isto.