sexta-feira, julho 03, 2009

HÁ SEIS ANOS A FALAR PARA OS PEIXES

Já lá vão mais de 6 anos, mas por manter actualidade, por coincidir com a demissão de Manuel Pinho e com a comparação que Alberto João Jardim fez do Governo da República à Máfia, e visto que ainda hoje escrevi sobre isso no Delito de Opinião, aqui fica o que há mais de seis anos escrevi no semanário Ponto Final, expurgado das partes do texto que apenas diziam respeito a Macau e com a constatação de que alguns dos que então eu ainda considerava titulares de alguma dignidade retórica terem, entretanto, ficado pelo caminho:

A IMPORTÂNCIA DA CREDIBILIZAÇÃO DO DISCURSO POLÍTICO

Tenho observado, com um misto de incredulidade e estupor, a forma como alguns dos protagonistas da vida pública (...) se mimoseiam entre si no confronto cívico e político. Não raras vezes o discurso raia o insulto soez, talvez o reflexo de uma aprendizagem pouco comprometida com as regras da democracia.

De Dahl a Luhman, de Sartori a Juan Linz ou de Aron a David Held, têm sido inúmeros os politólogos que se têm ocupado da definição dos critérios mínimos da democracia. E se parece aceite que a competição entre diferentes propostas, partidos e candidatos é uma virtude única dos sistemas constitucionais democráticos, também se evidencia que a competição tem de obedecer a regras previamente definidas e aceites por todos dentro de um patamar de liberdade e respeito sem o qual a democracia não funciona.

Todavia, não basta que tal patamar de liberdade e respeito seja alcançado para a democracia se afirmar, se esse desenvolvimento não for acompanhado, concomitantemente, de uma elevação e credibilização do discurso político e da sua prática. Uma e outra coisa são indissociáveis.

A afirmação de um discurso político linear e coerente por parte dos actores políticos e de todos aqueles que aspiram a uma intervenção de cariz cívico é o primeiro passo para garantir uma maior participação dos cidadãos e a indispensável credibilização de um sistema político democrático. Mesmo em escalas quase microscópicas.

Raymond Aron ao alinhavar as virtudes modernas do funcionamento dos regimes constitucionais pluralistas elencou três: o respeito pelas leis, a existência de opiniões próprias e o sentido do compromisso. E esse mesmo autor recordou a lição de Platão, segundo a qual, muito embora seja por vezes difícil manter o equilíbrio em todos os momentos entre todas as componentes do sistema, era pelo menos fundamental que a democracia não se corrompesse, sendo que a degenerescência dos regimes começava quando os governantes se comportavam como governados e os governados como governantes. Por vezes é mais fácil do que parece chegar a esse ponto.

Um dos primeiros indicadores do nível de uma democracia é dado pelo discurso político. A sua análise e o resultado das percepções deste no conjunto dos cidadãos é susceptível de revelar o grau de preparação ou impreparação dos dirigentes, a natureza das preocupações destes e, ainda, o maior ou menor grau de aceitação do discurso pelos respectivos destinatários.

(...)

Em Portugal, é hoje indiscutível que o discurso político tem constituído, pese embora algumas excepções, um poderoso estímulo à não participação dos cidadãos na vida democrática e um factor de descredibilização dos políticos e do sistema. Basta atentar no discurso de homens como Guterres, Guilherme Silva, Alberto João Jardim, Carlos Carvalhas, Paulo Portas, Isaltino Morais, Santana Lopes, Freitas do Amaral ou Mário Soares, para já não falar de muitos dos autarcas ou até do próprio Jorge Sampaio, para se perceber algumas das razões por que os políticos estão tão mal cotados na bolsa das profissões. Um estudo recente colocava-os no fim da escala, sendo o primeiro lugar ocupado pelos... bombeiros. Nem mais. Antes bombeiro que político.

Para que melhor se perceba do que estamos a falar, podemos distinguir, fundamentalmente, quatro tipos de discurso. O discurso gongórico, redondo, que aparentando falar claro nada diz e cuja mensagem acaba por se perder nos seus rodriguinhos. São exemplos deste tipo os discursos de Sampaio ou Guterres. Um outro tipo de discurso é o discurso demagógico-incisivo, pleno de carga retórica, destinado a impressionar as audiências sem nada acrescentar. O discurso de Portas ou Santana Lopes é um exemplo deste. Em terceiro lugar temos o discurso panfletário, incoerente, destinado a confundir os auditórios e a corresponder, de acordo com o calendário político ou a evolução dos acontecimentos, à necessidade de intervenção e de protagonismo de um actor ou grupo, às exigências eleitorais dos partidos ou dos seus líderes. São exemplos deste tipo os discursos dos deputados Guilherme Silva, Francisco Louçã ou Odete Santos. Por fim, temos o discurso político por excelência. Este será o discurso ponderado, sensato, que obedece a uma linha de raciocínio lógico ao longo do tempo, solidamente estruturado em valores e que, por vezes, tem alguma dificuldade em atingir os seus destinatários. Constituem exemplos deste tipo de discurso as intervenções de Adriano Moreira, de Pacheco Pereira, de Paulo C. Rangel, de António Vitorino ou dos falecidos João Amaral e Luís Sá.

Naturalmente que existem vários factores que influem na aceitação da mensagem, nomeadamente o carisma do actor político, a sua capacidade de se fazer ouvir, a maior ou menor dificuldade de acesso aos media ou a difusão e tratamento que sejam dados à mensagem pelos jornalistas.

Há, contudo, uma personalidade na vida pública portuguesa, cujo nível e inteligência das suas intervenções, independentemente de se gostar ou não das ideias, que já constitui um modelo. Trata-se do actual cardeal patriarca de Lisboa que, não sendo um político, tem sido capaz de afirmar um modelo de intervenção pautado pelo rigor, pela simplicidade e pela elevação discursiva. Estou à-vontade para dizê-lo pois que não só não tenho especial apreço por padres, como não sou um seguidor acéfalo dos modelos do Vaticano.

Posto isto, gostaria de sublinhar a necessidade dos actores políticos, em especial em Macau, pela influência que esse tipo de intervenção pode ter numa vasta camada da população que desconhece os modelos e as regras por que se deve pautar a intervenção democrática, serem capazes de reger a sua acção por modelos discursivos claros, simples, sérios e elevados.

A veemência do discurso atabalhoado, a intervenção que revela ignorância ou o simples insulto, apenas têm como efeito afastar os cidadãos da participação. A comunidade portuguesa de Macau tem a obrigação de ser a primeira a dar um exemplo de participação democrática, assente em padrões de respeito, decência e elevação. E isso pode começar já pelo discurso. Afinal, é também por aqui que uma democracia se distingue de uma choldra.".