De repente, quando estamos a meia dúzia de meses das eleições, eis que surgem uma série de propostas destinadas ao combate à corrupção. A mais importante destas será a do levantamento do sigilo bancário. Aparentemente, essa medida deveria merecer o aplauso generalizado de quem diariamente luta contra a corrupção e que de há muitos anos a esta parte não faz mais nada do que lutar pela transparência. E digo aparentemente porque a inusitada pressa com que surgiram pacotes de combate à corrupção faz, no entanto, temer o pior, um pouco à semelhança do que já no passado aconteceu com alguns diplomas legislativos (por exemplo: Código Penal, Código de Processo Penal, Código do Trabalho, etc.). Em causa está a forma como se irá processar o levantamento do sigilo sempre que haja as tais fundadas dúvidas que o autorizarão. Aquilo que tenho visto e acompanhado da actuação do fisco, presente e passada, não oferece hoje quaisquer garantias ao contribuinte de que o levantamento do sigilo não virá a ser transformado, tal como aconteceu com as escutas telefónicas, no primeiro instrumento da devassa não fundamentada da vida privada. Duvido mesmo que o recurso ao levantamento do sigilo, por causa do tradicional comodismo de quem investiga e da falta de meios, não venha a sobrepor-se às outras diligências de recolha de prova, tornando-se assim no meio de prova por excelência. Receio, em especial, que tal venha a acontecer, sistematicamente, a partir do momento em que seja subtraído ao controlo judicial e porque ainda recentemente tive vários exemplos da forma como alguns contribuintes têm sido prejudicados pela actuação, tão abusiva quanto negligente, de alguns agentes. Pior do que isso, não são poucas as vezes em que me chegam aos ouvidos comentários jocosos sobre a situação fiscal de alguns contribuintes, vindos de terceiros alheios aos processos, mas que gozam de relações próximas com alguns funcionários da máquina fiscal que entre duas imperiais e um pratinho de caracóis, ou no intervalo de um jogo de futebol, se permitem falar da vida de fulano e sicrano com o conviva do lado, esquecendo-se dos deveres que sobre si impendem. Num país em que a coscuvilhice é, lamentavelmente, um desporto nacional, temo que em cidades como Faro, onde aquela faz o dia-a-dia dos cafés e o contribuinte é sistematicamente olhado como um trafulha e um contribuinte relapso - mesmo sendo um contribuinte cumpridor, e aqui fala quem nos últimos anos tem sido regularmente incomodado pela máquina fiscal, talvez porque o cumprimento a tempo e horas das obrigações fiscais por parte de profissionais liberais também suscite a desconfiança e a prepotência de alguns -, por via do levantamento do sigilo bancário os extractos de alguns contribuintes passem a ser objecto de análise nas tertúlias que por aí proliferam. A bancada do PS tem a obrigação de não permitir que à boleia dos bons princípios e de necessidades imperiosas de combate à corrupção se aproveite o mais deplorável eleitoralismo (não é por vir de um Governo socialista que deixa de sê-lo), e a hipocrisia de continuar a deixar de fora os offshores por razões que só o PSD e o senhor ministro de Estado e das Finanças compreendem, para se dar mais uma machadada nos direitos de cidadania e na reserva da intimidade e da vida privada.