quarta-feira, setembro 21, 2011

UMA ESCOLA

(foto Público, Miguel Manso)

A entrevista que o primeiro-ministro Passos Coelho deu ontem à RTP deixou a imagem de  um homem esforçado. Ao mesmo tempo, foi também a imagem de um homem que transparentemente confessa a sua impotência para controlar as variáveis de que depende o seu sucesso e a nossa sobrevivência. Não apenas as que supostamente seria conhecedor antes das eleições e que o levaram a delirantemente prometer o que com toda a certeza se sabia que não poderia cumprir; como igualmente as que ignorando, ou tendo-lhe sido distorcidas pelos interlocutores, o levaram a contrariar as promessas eleitorais que fez e  que ele candidamente faz de conta que assume assestando a artilharia contra terceiros. Normal.
O estilo afasta-o, e ainda bem, do que foi cultivado pelo seu antecessor. À ferocidade sucedeu uma imagem mais domesticada, mais dócil, tão do agrado das gentes lusas. Afinal o outro lado da nossa passividade, talvez, por vezes, indiferença. Desconfio, contudo, que essa docilidade contribuirá muito pouco para a resolução dos nossos problemas. Nas horas de aperto que aí vêm, a boa imagem, o empenho de que dá mostras, o voluntarismo, tudo isso será receita insuficiente quando se fizer o balanço.
Passos Coelho defendeu-se como pôde e não sei se algum outro faria melhor. Mas a declaração que fez sobre a Madeira e Alberto João Jardim deixaram algo por dizer. A dolência de que deu mostra nas respostas é ao mesmo tempo sinal da sua resignação sobre os últimos trinta anos da nossa história. O mal é geral. Nós, portugueses, não gostamos de acertar as contas com o passado. Evitamo-lo. Ao passado e às contas. Ou porque o desastre seria sempre inevitável - resignação - ou porque se remetermos as contas para o futuro elas tornar-se-ão menos dolorosas. Esta é ainda outra forma de resignação, se bem que disfarçada pelas preocupações - incapacidade - com a gestão do presente.
A entrevista revelou uma outra coisa: revelou um primeiro-ministro tão transparente que deixou transparecer as razões do nosso fracasso.
A má gestão, a incompetência, o abuso, o desleixo, a impreparação de quem governa - hoje como ontem - ou a incompreensão dos que vindo de fora nos quiseram ajudar pode esconder-se atrás de um aumento de impostos. O que aconteceu com o nosso défice público ou na Madeira não difere do que aconteceu com o BPN, com as escutas que misturam operadoras telefónicas com espiões de banda desenhada ou com muitas das operações e negócios de "sucesso" que se foram fazendo nas últimas décadas e que encheram as páginas de jornais e revistas. Dos mais cor-de-rosa aos mais descoloridos. Enquanto uns sonhavam outros corrompiam e corrompiam-se.
Se um dia houve quem visse num par de calções uma tanga e tenha partido em busca de um fraque, hoje vemo-nos todos, tristemente, sem calções ou tanga, mostrando as rugas e a flacidez envelhecida e envergonhada do nosso corpo descoberto. 
Passos Coelho tentará, através da receita dos impostos e da imposição de um regime dietético extremo, que quem envelheceu prematuramente numa vida desregrada, perdendo nesse caminho massa cinzenta, cabelo, dentes, visão e alguns órgãos vitais, rejuvenesça. Vai tentar um milagre.
Não há mal nenhum em que os crentes acreditem em milagres. Mas por muito grande que seja o milagre há uma coisa de que ele devia ter consciência: os impostos, a troika, as privatizações, o emagrecimento do Estado, a viagem ao Brasil do ministro Relvas ou a reforma da justiça podem livrar-nos de uma tragédia grega, restituir-nos alguma dignidade e até trazer-nos um pano limpo para nos cobrimos sem que isso resolva os nossos males. Um primeiro-ministro tem de ter consciência disso. 
Porque o nosso drama, aquele em que todos os antecessores de Passos Coelho falharam será provavelmente o mesmo em que ele também claudicará. Porque há coisas que não se resolvem com mais impostos, melhores leis ou gerindo melhor os nossos escassos recursos. A ocultação de dívida da Madeira não é só um caso de polícia para entreter os procuradores do Dr. Pinto Monteiro. Mais do que isso, é sintoma de uma outra doença que muitos dos nossos antepassados maiores identificaram. A mesma doença que obrigou Pessoa a esconder-se atrás de uma chávena de café do Martinho da Arcada, vendo a sua imagem reflectida no fundo, ou que despachou Jorge de Sena para o Brasil e os confins da Califórnia. Uma doença que nos corrói há séculos, pior do que a corrupção, mais violenta do que o abalo de 1755. Uma doença que até hoje todos temem e ninguém ousa enfrentar. Porque nos come a carne, porque se entranha na alma e reproduz-se mais depressa que as facturas da Madeira. A canalhice. 
Se Portugal um dia quiser triunfar, se Passos Coelho ou qualquer outro que venha a seguir não quiser falhar, terá de começar por aí. Pela canalhice. Em Portugal, a canalhice é uma escola. Um tratado. 
Não é só o Estado que é reformável. A canalhice também é. Com transparência e de acordo com as regras. Reformar a canalhice não implica aumentar os impostos, apresentar um ar compungido perante as televisões ou pedir ajuda à troika
E será o suficiente para de uma forma barata nos livrar dos canalhas que deixaram viver o Dantas, que lixaram o Pessoa, ostracizaram o Jorge de Sena e um dia emitirão as facturas que o Jardim mandou esconder, enquanto eles urram de gozo e o primeiro-ministro é maquilhado para a entrevista.

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